Voltei a Paris no fim de Setembro, desta vez sozinha e em trabalho.
Apesar dos motivos que me faziam regressar à Cidade Luz serem muito
diferentes, senti a mesma emoção, a mesma paixão arrebatadora,
completamente rendida aos encantos da cidade. Entre o aeroporto e o
hotel mil e um pormenores cativavam a minha atenção, fiz um esforço para
controlar o ímpeto de saltar do táxi e ir conhecer ruas e ruelas pelas
quais nunca tinha caminhado, cafés, restaurantes e bares que não
provara, lojas, feiras, museus, monumentos que não tinha visitado… Uma
semana em Paris e pouco vimos para além dos locais mais turísticos, a
torre Eiffel, o Arco do Triunfo, Notre Dame e o Louvre num constante
tornado puxada pela mão dele, passando a maior parte do tempo no quarto
do hotel a explorar o corpo um do outro, de todas as formas possíveis e
imagináveis. E que corpo… sentia um calor crescente nascer no meio das
coxas, tomando conta de mim cada vez que recordava aqueles momentos de
volúpia, vivendo dias sem saber se eram noites.
-Une Bourgogne Pinot noir s'il vous plaît.
-Bouchard Aine, mademoiselle?
-Oui, parfait! Disse ao empregado de ar insolente, na esplanada do
La Tartine, pedindo para além do vinho, um pão delicioso e uma tábua de
queijos divinal. Marais é um bairro encantador de ruas estreitas,
repleto de cor, magia, brilho… o sol mesmo tímido dava um ar místico a
todos os recantos, e eu abandonava-me de perna cruzada numa cadeira em
palhinha, cansada do passeio de domingo, fechava os olhos por detrás dos
óculos escuros, deixando que os sons e os odores da cidade me
preenchessem, sentia-me muito feliz por ali estar. Tudo em Paris parece
harmonioso, conjugado na perfeita medida, charme, arte e cultura.
O telemóvel tocou-me na pouca vontade de o atender, um número
anónimo lembrava-me as razões para ali estar. Não me apetecia, não tinha
vontade de saber. Só queria voltar as costas, abandonar toda a vida até
aí vivida e recomeçar, partir do zero, apaixonar-me... entregar-me
intensamente! Atendi desanimada perante a falta de coragem para
enfrentar o meu destino, como se fosse um touro ensanguentado na arena a
que recuso olhar, do outro lado uma voz familiar meiga e doce fez-me
sorrir e dizer alto.
-Oh quantas saudades! Que é feito de ti miúda?
Desliguei com um sorriso nos lábios, olhando incrédula para o
visor. E ele aproximou-se, senti a sombra pairar sobre mim, o perfume de
homem penetrou-me os sentidos sem eu me aperceber.
-Posso? perguntou puxando a cadeira ao lado da minha. Nem respondi e
ele sentou-se, justificando que tinha ouvido a conversa, e que já não
conseguia ter paciência para os franceses, que eu o tinha de ajudar a
ver-se livre do colega que se aproximava acenando alegremente com o
jornal debaixo do braço…
-Tem preferência pela forma de extermínio? Perguntei séria e
profissional, tirando um cigarro do maço que o Don Juan me estendia.
-Só o consigo imaginar degolado… O homem fala pelos cotovelos, até tem aberturas no casaco!
-Degolado nos dias de hoje é pouco comum, vou ver o que se consegue arranjar.
O tal colega barrigudo e de sorriso permanente no rosto preparava-se
para ocupar a terceira das quatro cadeiras da mesa, quando o senhor
perfumado de cigarro pousado no canto do lábio se levantou e me
apresentou.
-Laissez-moi vous présenter à …. Marta, ami de longue date ... vient
d'arriver à Paris et j'ai promis de l'emmener pour un tour …
- Je m´appelle Judite!
-Pardonne-moi… Judite! Corou o individuo perfumado.
-Enchanté mademoiselle! Disse o senhor barrigudo mas cordial, apertando-me a mão gentilmente.
Deixei-me arrastar pelo ar certo dele, toda a composição lhe
assentava como uma luva, desde a camisa em linho descontraída casada com
umas calças claras, o cabelo denso e escuro salpicado em prata, o olhar
indeciso entre um azul e cinzento. Olhei para trás para o senhor
desolado entregue ao jornal, e o empregado quase feliz com a gorjeta que
o cavalheiro galante lhe deixara juntamente com o pagamento da minha
despesa, enquanto nos dirigíamos para Place des Vosges.
-Juan Belmonte ao seu dispor! Apresentou-se fazendo uma vénia teatral.
-Como o toureiro que lia livros?
-Prefiro as leituras às lides…! Disse com um sorriso modesto nos
lábios. – Janta comigo, é o mínimo que posso fazer por me teres salvo da
companhia do belga.
-Não te conheço de lado nenhum, Juan Belmonte!
-Mas não é isso que eu sinto… e não é isso que tu sentes…pois não?
O homem nunca se deve por em posição de perder o que não se pode dar ao luxo de perder.
-Hemingway…
-Sinto que te conheço… sei que te conheço… aliás… E fez uma pausa
absorvendo do ar uma porção invisível de eloquência. - Sei tudo o que há
para saber sobre ti!
Um calafrio percorreu-me a espinha e procurei controlar os sentidos
enrolando no pescoço o lenço indiano em tons quentes. Mas não era o
calor da seda que eu sentia, mas dos seus dedos, puxando-me a boca na
direcção da dele.
Savolium, como os romanos denominavam o beijo profundo.
O primeiro de todos os beijos sacudiu-me leve pelo éter como se
fosse uma pena, privando-me da segurança do chão. O segundo de todos os
outros estremeceu a terra fazendo com que as estrelas perdessem o seu
lugar, e no terceiro senti-me explodir de prazer, inundado o meu sexo
desejei morrer naquele instante. Chamou um táxi. As mãos exploravam o
que os olhos não viam, deixando-se guiar como amantes cegos ávidos de
prazer. Paris passava iluminada ao anoitecer pelas janelas do automóvel,
mas que interessava agora...