primeiro round em http://apaixonadassassina.blogspot.com/2011/09/lugares-desmarcados.html
O pé-direito elevado em colunas espaçadas, aberta uma das paredes em
janelas, conferia à sala uma dimensão ilusória. Moderadamente iluminada,
o tecto em tabuado escuro suavizava o ambiente tornando-o harmonioso,
distante na medida certa do formal a que a ocasião impunha,
experimentando quase um arrebol romântico.
Os focos acenderam um pequeno palco negro não merecedor de
reparo, a poucos metros da nossa mesa. Os músicos abraçaram um círculo
imaginário, encarnando os instrumentos com movimentos certos,
desaparecendo sobre eles assim que a cantora subiu ocupando o centro
insigne.
Trajava um vestido franjeado que lhe tornava a pele ainda mais
pálida pelo contraste com o tecido escuro, ornamentado o rosto de uns
curtos e largos caracóis platinados, e a boca ladeada por um baton
afogueado.
Soltaram-se os primeiros acordes amarrados, manteve os olhos
fechados enquanto os sentia roçagarem a pele branca e depois a boca
abriu-se, e das goelas desfraldou límpida a voz com pronúncia quente a
português tropical. Bom demais!
Ergueu-se e senti que estendia a mão, convidando-me para dançar.
Olhei primeiro a mão, depois olhos nos olhos, na tentação morna pensei
fazer-me difícil, fingir que não estava ansiosa para sentir o ritmo
descer-me pelo corpo e deixar que tomasse conta de mim. Acedi mas
ocultei o desejo que já se instalara em definitivo, deslizei pelo soalho
dominada pelo ritmo, refreada nos seus braços avassaladores, mãos
grandes arrogaram-me, levando-me para longe e de novo trazendo-me para
perto, tão perto que os lábios quase se tocaram. Quase!
O romano desconcertado, afastara-se em busca do seu lugar, a sua
altivez sofrera uma estranha metamorfose, caminhava aturdido pelo meio
das mesas redondas como uma gigante Blattaria, de orgulho ferido pela atenção que subitamente eu havia transferido para o estranho que se sentara ao meu lado.
Do barulhento italiano, já não havia sinal.
Respondi com um sorriso ao seu sorriso, agradada com tamanha
ousadia. Li o seu nome em voz alta, segurando com a ponta dos dedos o
cartão creme impresso a Palatino linotype com letras douradas
tamanho vinte e oito, questionando qual seria a probabilidade de
ficarmos sentados lado a lado, no meio de tantos convidados. A conversa
fluiu prazenteira durante todo o jantar, desobrigada de constrangimentos
à medida que ia desfilando a ementa à nossa frente.
Conduzia-me pelo espaço num movimento cadenciado, a minha mão sobre o
seu ombro, sentindo a dele no fundo das minhas costas, firme. E tão
perto, podia admirar cada pormenor do seu rosto, ver com clareza a cor
dos olhos que desviava sem querer dos meus … “só tinha de ser com você”!
“É, você que é feito de azul,
Me deixa morar nesse azul,
Me deixa encontrar minha paz,
Você que é bonito demais,
Se ao menos pudesse saber
Que eu sempre fui só de você,
Você sempre foi só de mim.”
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
terça-feira, 6 de dezembro de 2011
o beijo
Uma morrinha cobria o pátio em cimento nos primeiros tempos da tarde,
trocávamos o acalento dos corredores apinhados pela húmida e alternativa
entrada exterior. Língua Portuguesa na sala quinze depois de um furo
bem recebido.
Puxou-me desajeitado por um braço na promessa de revelar um segredo, e deixei-me ir enfadada pelos coaxos. Na distância de alguns metros, ao dobrar da esquina do pavilhão, a sala de química vazia, persianas corridas até ao topo, era o cenário perfeito que ele procurava. Aproximou-se sem aviso, encostando os lábios de anfíbio à minha boca, e depois o deslizar da extensa língua ainda a saber a moscas.
Pressionou-me entre o seu corpo rugoso e a flexibilidade do plástico da persiana, mantendo-me cativa qual presa apanhada de surpresa, os joelhos tremiam elevando-me cinco centímetros acima do chão, segurou-me ferozmente pelas ventosas onde terminavam os seus dedos. Não ofereci resistência, aguardando de olhos bem fechados até deixar de sentir a sua enorme boca que quase me engolia.
Afastou-se e eu acolhi uma lufada de ar fresco e morno, recuperando o equilíbrio. Acabara de reduzir a minha expectativa de vida num minuto, mas era bom. O ritmo cardíaco lentamente decaia, e ele olhava-me com aqueles olhos claros e protuberantes de sapo, com um esgar parvo a rasgar-lhe o rosto.
Ao sublevar da campainha seguiu-se a entrada da professora na sala, as maçãs ruborizadas anunciavam à plateia que se dava início ao primeiro acto. Depois da Língua Portuguesa seguiu-se Ciências da Natureza, e eu esperava ansiosa que as horas passassem, olhando por cima do ombro na esperança que o Sapo se tivesse transformado finalmente num Príncipe.
Puxou-me desajeitado por um braço na promessa de revelar um segredo, e deixei-me ir enfadada pelos coaxos. Na distância de alguns metros, ao dobrar da esquina do pavilhão, a sala de química vazia, persianas corridas até ao topo, era o cenário perfeito que ele procurava. Aproximou-se sem aviso, encostando os lábios de anfíbio à minha boca, e depois o deslizar da extensa língua ainda a saber a moscas.
Pressionou-me entre o seu corpo rugoso e a flexibilidade do plástico da persiana, mantendo-me cativa qual presa apanhada de surpresa, os joelhos tremiam elevando-me cinco centímetros acima do chão, segurou-me ferozmente pelas ventosas onde terminavam os seus dedos. Não ofereci resistência, aguardando de olhos bem fechados até deixar de sentir a sua enorme boca que quase me engolia.
Afastou-se e eu acolhi uma lufada de ar fresco e morno, recuperando o equilíbrio. Acabara de reduzir a minha expectativa de vida num minuto, mas era bom. O ritmo cardíaco lentamente decaia, e ele olhava-me com aqueles olhos claros e protuberantes de sapo, com um esgar parvo a rasgar-lhe o rosto.
Ao sublevar da campainha seguiu-se a entrada da professora na sala, as maçãs ruborizadas anunciavam à plateia que se dava início ao primeiro acto. Depois da Língua Portuguesa seguiu-se Ciências da Natureza, e eu esperava ansiosa que as horas passassem, olhando por cima do ombro na esperança que o Sapo se tivesse transformado finalmente num Príncipe.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
Omnes vulnerant
Deitaste-me no chão como na aurora do Mundo, cobrindo-me com um
manto de estrelas na lenta movimentação pelo celeste, e em silêncio,
beijamos a Lua com a ponta dos dedos.
O peso do escudo que ostentava o confronto entre a Quimera e Belerofonte, já não se sustinha no antebraço, o herói montado em Pégaso derrotava o monstro que bafejava fogo.
Arranquei o elmo adornado de crina escarlate todo ele salpicado de sangue, deixando-o cair pesado por terra. Sufocava sob o metal finamente gravado com intrincados desenhos lembrando anfisbenas. Apartei o cabelo colado ao rosto pelo esforço, respiro.
A lança abandonada num dorso moribundo, não voltaria a ser arremessada pela mão tão habituada, e apenas o xiphos se mantinha atado, oscilante por debaixo do braço esquerdo. Senti-lhe o punho já gasto tingido de suor, como um amigo a quem se abraça, o fiel gume limpo de sangue, enterrado para a eternidade na doce bainha.
As ruínas recortavam o luar em formas estranhas, seres que conspiravam animados pelo nocturno, projectando sombras sem movimento. Nunca temes o que se oculta por detrás destes edifícios, o que foi em tempos um império, não passam agora de escombros esquecidos. Tenho frio.
Deslacei as tiras de couro, a túnica de linho sob a couraça absorvia o sangue numa pasta húmida e quente. A batalha ainda não tinha chegado ao fim e eu tombava aos teus pés, destituída de forças, mãos ensanguentadas, negras da terra que tudo engole. Não há poro em mim que não se encha dela, começou por se acumular debaixo das unhas, lentamente depositou-se debaixo da pele, o que era apenas poeira, cinza, tornou-se uma segunda camada viva. Preencho-me com ela para ocupar o vazio que em mim vai crescendo, o vazio que vais deixando.
Tens os olhos marejados turvos de sal. Não feches a ferida que abriste, quero que ela sangre continuamente, recordando-me o torpor avassalador que exerces sobre mim. O inverno não tarda, as folhas já abandonaram os ramos mais altos e cobrem os braços do vento.
Prostrada do ferimento, perco o olhar algures no infinito. Sinto o leve caudal morno que escorre do peito em direcção ao ventre, transpõem o feltro que forra as cnémides atadas às tíbias, manchando o teu manto dourado.
Omnes vulnerant, ultima necat.* Disse, depondo as minhas armas, abrindo mão de ti para sempre.
*Todas (as horas) ferem, a derradeira mata.
O peso do escudo que ostentava o confronto entre a Quimera e Belerofonte, já não se sustinha no antebraço, o herói montado em Pégaso derrotava o monstro que bafejava fogo.
Arranquei o elmo adornado de crina escarlate todo ele salpicado de sangue, deixando-o cair pesado por terra. Sufocava sob o metal finamente gravado com intrincados desenhos lembrando anfisbenas. Apartei o cabelo colado ao rosto pelo esforço, respiro.
A lança abandonada num dorso moribundo, não voltaria a ser arremessada pela mão tão habituada, e apenas o xiphos se mantinha atado, oscilante por debaixo do braço esquerdo. Senti-lhe o punho já gasto tingido de suor, como um amigo a quem se abraça, o fiel gume limpo de sangue, enterrado para a eternidade na doce bainha.
As ruínas recortavam o luar em formas estranhas, seres que conspiravam animados pelo nocturno, projectando sombras sem movimento. Nunca temes o que se oculta por detrás destes edifícios, o que foi em tempos um império, não passam agora de escombros esquecidos. Tenho frio.
Deslacei as tiras de couro, a túnica de linho sob a couraça absorvia o sangue numa pasta húmida e quente. A batalha ainda não tinha chegado ao fim e eu tombava aos teus pés, destituída de forças, mãos ensanguentadas, negras da terra que tudo engole. Não há poro em mim que não se encha dela, começou por se acumular debaixo das unhas, lentamente depositou-se debaixo da pele, o que era apenas poeira, cinza, tornou-se uma segunda camada viva. Preencho-me com ela para ocupar o vazio que em mim vai crescendo, o vazio que vais deixando.
Tens os olhos marejados turvos de sal. Não feches a ferida que abriste, quero que ela sangre continuamente, recordando-me o torpor avassalador que exerces sobre mim. O inverno não tarda, as folhas já abandonaram os ramos mais altos e cobrem os braços do vento.
Prostrada do ferimento, perco o olhar algures no infinito. Sinto o leve caudal morno que escorre do peito em direcção ao ventre, transpõem o feltro que forra as cnémides atadas às tíbias, manchando o teu manto dourado.
Omnes vulnerant, ultima necat.* Disse, depondo as minhas armas, abrindo mão de ti para sempre.
*Todas (as horas) ferem, a derradeira mata.
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