"Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te."
William Shakespeare
William Shakespeare
Demorei-me em frente ao espelho, fitando indecisa aquele rosto de olhos inchados e lábios quebrados sem sorriso, emoldurado por caracóis rebeldes que cresceram durante a noite, desalinhados no topo da nuca, gritando em desespero por um pente. Quem é esta? Interroguei-me, quem é esta que acordou pela madrugada na minha cama, que usa o meu pijama e calça as minhas pantufas? Esta que espreme o dentífrico pela cerda da minha escova, esta que me desafia de olhos semicerrados, mirando-me na intimidade do meu casulo. Arranquei os restos de sono da cara com água fria, vi-os diluírem-se lentamente, desenhando círculos que desobedecem à força de Coriolis, descendo contrariados pelo ralo do lavatório.
Um breve toque no telemóvel distraiu-me do duelo diante da imagem estranha, anunciando sem graça a chegada de uma mensagem. Não me precipitei sobre ele, aquele sinal vespertino nunca poderia ser de quem eu gostaria que fosse. “Pequeno-almoço?” Perguntava em duas palavras, hoje não estou boa companhia, sinto-o à flor da pele que não se quer minha, mas aceito pela necessidade de forrar o estômago e de lhe dedicar no mínimo meia hora de atenção.
Perdemos a conta aos anos que nos ligam, foi sempre assim uma indefinição, uma relação de amizade estranha, inclassificável pelos padrões normais que nos tentam impor diariamente. “Como o conheceste?” querem saber as curiosas… não sei, já não me lembro, foi um acaso.
Quando entro no pequeno café que se alonga num corredor de mesas, já ele desfolha sem interesse o jornal. Sorri assim que me vê, acenando-me na solidão de lugares à espera de clientes. Mesmo que o espaço estivesse a abarrotar de cabeças e corpos bebericadores de cafeína, ainda mal acordados pela manhã cinzenta que se colava na montra recheada de pasteis, aquele rosto de uma beleza fora do habitual, sobressairia como um raio de sol que rasga as nuvens. Já me questionei várias vezes sobre as forças da natureza que estariam presentes no momento da união de duas células singulares, para que originassem um ser humano tão distinto, mesmo não sendo perfeitamente simétrico, um belíssimo exemplar da raça humana!
-Que carinha é essa? nem te reconheço…
-nem eu mesma me reconheço… Respondo, com vontade de deitar a cabeça sobre a mesa.
-que se passa contigo? Que olhar triste é esse?
- não sei, ando assim desanimada… Lê ai o meu horóscopo!
-queres que te anime? Pergunta provocador, uma sobrancelha sobe ligeiramente acima do normal, mas é uma tentação a que resisto sem dificuldade.
-não é falta dessa animação…
-já entendi, é algo mais condensado, mais profundo, o amor tem dessas coisas…
- para quem se diz pouco entendido nos assuntos do coração, pareces um especialista a falar…
-dedico muito tempo à observação, e tu minha querida, és uma vítima dessa estúpida condição de apaixonada… transpiras paixão por todos os poros… quando é que aprendes a viver sem pensar nas consequências dos teus devaneios? Nem sempre é necessário amar…
-se tivesse ponderado nas consequências a que te referes, não estaria a suspirar… sinto-me uma idiota.
-não digas isso… sabes que no fundo te invejo por seres assim, uma apaixonada compulsiva! vais ver que daqui a dias já te apaixonaste de novo… logo esqueces este e outro ocupa esse lugar…
- invejo-te por seres um desprendido emocional… Lê ai o meu horóscopo!
