quarta-feira, 30 de novembro de 2011

desalento

"Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te."
William Shakespeare

Demorei-me em frente ao espelho, fitando indecisa aquele rosto de olhos inchados e lábios quebrados sem sorriso, emoldurado por caracóis rebeldes que cresceram durante a noite, desalinhados no topo da nuca, gritando em desespero por um pente. Quem é esta? Interroguei-me, quem é esta que acordou pela madrugada na minha cama, que usa o meu pijama e calça as minhas pantufas? Esta que espreme o dentífrico pela cerda da minha escova, esta que me desafia de olhos semicerrados, mirando-me na intimidade do meu casulo. Arranquei os restos de sono da cara com água fria, vi-os diluírem-se lentamente, desenhando círculos que desobedecem à força de Coriolis, descendo contrariados pelo ralo do lavatório.

Um breve toque no telemóvel distraiu-me do duelo diante da imagem estranha, anunciando sem graça a chegada de uma mensagem. Não me precipitei sobre ele, aquele sinal vespertino nunca poderia ser de quem eu gostaria que fosse. “Pequeno-almoço?” Perguntava em duas palavras, hoje não estou boa companhia, sinto-o à flor da pele que não se quer minha, mas aceito pela necessidade de forrar o estômago e de lhe dedicar no mínimo meia hora de atenção.
Perdemos a conta aos anos que nos ligam, foi sempre assim uma indefinição, uma relação de amizade estranha, inclassificável pelos padrões normais que nos tentam impor diariamente. “Como o conheceste?” querem saber as curiosas… não sei, já não me lembro, foi um acaso.

Quando entro no pequeno café que se alonga num corredor de mesas, já ele desfolha sem interesse o jornal. Sorri assim que me vê, acenando-me na solidão de lugares à espera de clientes. Mesmo que o espaço estivesse a abarrotar de cabeças e corpos bebericadores de cafeína, ainda mal acordados pela manhã cinzenta que se colava na montra recheada de pasteis, aquele rosto de uma beleza fora do habitual, sobressairia como um raio de sol que rasga as nuvens. Já me questionei várias vezes sobre as forças da natureza que estariam presentes no momento da união de duas células singulares, para que originassem um ser humano tão distinto, mesmo não sendo perfeitamente simétrico, um belíssimo exemplar da raça humana!
-Que carinha é essa? nem te reconheço…
-nem eu mesma me reconheço… Respondo, com vontade de deitar a cabeça sobre a mesa.
-que se passa contigo? Que olhar triste é esse?
- não sei, ando assim desanimada… Lê ai o meu horóscopo!
-queres que te anime? Pergunta provocador, uma sobrancelha sobe ligeiramente acima do normal, mas é uma tentação a que resisto sem dificuldade.
-não é falta dessa animação…
-já entendi, é algo mais condensado, mais profundo, o amor tem dessas coisas…
- para quem se diz pouco entendido nos assuntos do coração, pareces um especialista a falar…
-dedico muito tempo à observação, e tu minha querida, és uma vítima dessa estúpida condição de apaixonada… transpiras paixão por todos os poros… quando é que aprendes a viver sem pensar nas consequências dos teus devaneios? Nem sempre é necessário amar…
-se tivesse ponderado nas consequências a que te referes, não estaria a suspirar… sinto-me uma idiota.
-não digas isso… sabes que no fundo te invejo por seres assim, uma apaixonada compulsiva! vais ver que daqui a dias já te apaixonaste de novo… logo esqueces este e outro ocupa esse lugar…
- invejo-te por seres um desprendido emocional… Lê ai o meu horóscopo!

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Sr. Pontual

Atravessei o corredor o mais apressada que os meus saltos permitiam, está mais que comprovado que não foram feitos para maratonas, são lindos, são novos e o latejar no calcanhar é o prelúdio para um dia longo. A secretária já me esperava ao alto forçando um sorriso nos lábios bem delineados, encarnado vivo sob uma pele imaculadamente branca, encaminhando-me com um gesto para a sala de reuniões.

De pé junto à janela, olha para o relógio no preciso momento em que entro ofegante, desfazendo-me em desculpas. Sabe que me irrita com aquele gesto, faz de propósito para me provocar, depois arranja o punho da camisa impecável, como tudo o resto nele. O meu director sorri, levanta-se para me cumprimentar, apertando as minhas mãos nas dele, e depois diz baixinho, galanteador como sempre: tivesse eu menos trinta anos…

Dá início à reunião depois de atirar pelo ar um olhar reprovador que eu adoro, era capaz de o fazer esperar várias horas só para ver aquele azul reduzido a cinza, vezes e vezes sem conta. É conhecido pelo rigor, excelente profissional, a pontualidade dizem que herdou juntamente com uma avultada quantia de dinheiro, uma costela britânica por parte da mãe. O director decide fazer mais uma observação … estivesse eu no lugar dele… não a deixava sair desta sala sem um convite para jantar! E sorri. Ele parece irritado com os nossos segredos e sorrisos cúmplices.

No fim da reunião fica à minha espera, o meu director parece ter tudo pensado e arrasta as restantes pessoas para fora da sala, discute pormenores técnicos com os demais colaboradores, deixando-me para trás com ele. Ainda não entendi o que vim aqui fazer.
Segura-me a porta com falsa cortesia, mira-me de cima a baixo, sinto-o com o olhar e depois com a mão numa dança pelas minhas costas, até a assentar de dedos abertos na nádega mais próxima. Aperta-me de forma excitante contra ele.

Às 21 em minha casa? Desafio, humedecendo o lábio inferior que deseja ser beijado. Inclina a cabeça próximo da minha sem me tocar, e diz num sussurro rouco: às 21 em ponto lá estarei … já sei que vou ter de esperar… mas não me importo!
Às vinte e uma, nem mais nem menos um minuto ou segundo que seja, ele chega. Recebo-o à porta em lingerie, atrasada como sempre.
Gosto dos teus atrasos, diz-me correndo os dedos pelo meu decote, arrepiando-me a derme.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Sr. Pecado

Estiquei os braços num longo espreguiçar, retesei os pés no limite quente do lençol. A outra metade da cama era fria quando vazia, senti a falta de um café forte e de algo que me confortasse o estômago. Apesar de ser feriado, incitei o corpo a abandonar a preguiça, metendo os pés nas pantufas de pêlo de ovelha, enrolando-me num largo casaco de malha.

Tomei o pequeno-almoço na poltrona voltada para a varanda, a casa em silêncio, lá fora um dia claro cheio de Outono apelava ao recolher. Precisava de mudar a pelagem, como uma raposa que sente o branco invernoso avançar, resgatar da zona mais recôndita do roupeiro os agasalhos quentes. A manhã torna-se proveitosa, o tempo verte-se lento e acumula sacos de excessos junto à porta, com destino determinado.

Desço à arrecadação por detrás dos lugares de garagem, a quietude é pontualmente interrompida pelas bombas da cisterna e pelo automatismo da porta que anuncia a chegada ou a saída de um veículo. O silêncio mortiço não me incomoda minimamente, perco-me pelos objectos aqui deixados. Um carro estaciona, o motor cala-se e é substituído pelo trautear de uma melodia conhecida. Reconheço a voz, canta ocasionalmente no chuveiro…

Se o pecado mora ao lado, estou sem dúvida a falar no vizinho do quarto direito. Segura a porta do elevador quando me vê surgir, e depois ajuda-me com a caixa cheia de livros que resolvi expiar do esquecimento. Parou de cantar, faz conversa de circunstância acompanhando-me até ao meu capacho.

Existem diversos pecados, desde os mortais aos veniais, sendo estes últimos mais leves, ligeiros… mas se não confessados, levam-nos ao Purgatório. Oh! O Purgatório… não me importava de o visitar pelo braço deste diabo de biceps musculados, mãos largas e um queixo quase quadrado. Convido a entrar e a aquecer-me.
Se o pecado morasse ao vosso lado, batiam-lhe à porta, ou mudavam de endereço? Desde esse dia ganhou a alcunha de Sr. Pecado.

sábado, 5 de novembro de 2011

na zdravie! capítulo IV

Não me responde, parece que aprendeu comigo, apenas sorri e tem um jeito muito próprio de o fazer, não é excepcionalmente belo, tem algo de estranho, talvez seja isso que me encanta. Esta singularidade diabólica que desenha nos lábios, um lobo matreiro de dentes aguçados, dissimulados numa branda pelagem de carneiro.

A mão desliza do joelho para o interior da coxa, o que era apenas dedos a passearem inocentemente pela minha derme arrepiada, tornam-se repentinamente num toque excitante, e confessa o quanto está feliz por me ter encontrado. Convido-o para me fazer companhia até à praia, conheço um areal pequeno, praticamente deserto pela arriba que dificulta o acesso. Inclina-se sobre mim para me beijar, os lábios encontram-se, sinto a garganta seca, o coração dispara, abro ligeiramente as pernas em perfeita e distante sincronia com os lábios, os dedos dele tocam-me, e a língua vai entrando numa boca que já conhece sem constrangimentos. Suga-me, enrosca-se qual trepadeira, deliciosa a boca, infernais os dedos.

Empurro-o, resisto, reclina-se na lona com ar satisfeito, sabe o que provoca, acabou de o saborear na ponta dos dedos que lambe com prazer. Quem o vê até julga que está saciado com um lauto manjar. Não são dedos nem pele, parecem mais garras cobertas de escamas aveludadas, escarlates lâminas que se cravam em mim. Paga os cafés e a água que escorreu veloz na minha garganta, levo-o pelo braço enrolado no meu, deixa-se ir mais uma vez sem desculpas, confiando nos meus instintos de navegante até à orla marítima, onde a vegetação sucumbe ao vento.

O negro das altas escarpas xistosas funde-se ao longe com vales cobertos de verde, numerosos veios avermelhados e alaranjados rasgam a superfície da falésia, um areal dourado tranquilo repousa no fundo, qual tesouro escondido de olhares alheios, banhado por um mar que oscila nas vagas e brinda-nos com a brisa fresca deixando o sabor do sal retido na pele. Uma praia quase deserta, um fim de dia que reclama o sol e entrega em justa recompensa a noite, sentando-se no trono uma lua nem tão cheia quanto isso.

Os corpos nus encontram-se depois de beijados pelo mar morno, dissimulados do mundo numa reentrância escavada na pedra solta pela força da natureza. Apoia-me numa rocha mais lisa, abre-me para que o receba em investidas compassadas, como as ondas que rebentam, abruptas, espumadas na areia, sinto-o dentro de mim, num momento infinito até me afogar nele. Sela o acto com um beijo. Um beijo terno, em tudo idêntico ao que demos à porta do hotel em Bratislava. Encosta a cabeça à minha, olhos de um profundo cinzento, doce abismo para a minha alma.

-que rocha escura é aquela? Aponto para a escarpa que desce abrupta. O mesmo sorriso intrincado surge no lábio, e na pronúncia que aperta os erres responde.
- fine-grained igneous rocks… Schist! Rise in proud hills, carved out by the hand of time, rocky tones face the watery depths of blue and the emerald green of the ocean floor…

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Medo ou falta de oxigénio?

Acordei em sobressalto, o coração a mil parece querer cavalgar sem arreios pelo peito, descontrolado, ainda sinto as mãos dele em volta do meu pescoço, tão real como se tivesse mesmo acontecido, a pressão na cartilagem da traqueia, mãos firmes, e no meu agitar vertia as forças que se perdiam, braços pesados como chumbo, pernas congeladas, amarradas sem acção… queria gritar, atingir com dureza aquele rosto ausente de gente, de voz, de cheiro… uma cara vazia, mas era ele sem dúvida, aquele que por vezes me atormenta, em silêncio me habita o sonho, infiltrando-se sorrateiramente pela madrugada nos meus pesadelos. Um arrepio percorre-me, mas estou a salvo.

Voltei-me depois de confirmar com um sorriso que ainda tinha três horas para dormir, dá-me sempre alguma tranquilidade saber que ainda me resta tempo, e três horas parecem uma eternidade. Raramente retorno ao pesadelo, mesmo que me sinta com forças e no intimo o queira confrontar, armada até aos dentes… prefiro não o fazer, fecho os olhos e espero o aconchego de um sonho… um sonho especial… daqueles como o outro chamou de Puff... Mesmo que no fim desapareça numa nuvem!

Encolho-me, está mais frio, sei que de lado ele não volta para me importunar. Porque será que isto acontece? Sempre que acordo de um pesadelo encontro-me em posição de decúbito dorsal. Será maior o esforço para respirar, e o cérebro fica privado de algum oxigénio, ou será que não passa de um medo ancestral, expor o abdómen relaxadamente… algo digno de um animal dominante, já vi alguns felinos dormirem assim, mas o instinto diz-nos que devemos assumir uma posição mais defensiva, e até porque sinto frio, encolho-me. E enquanto penso nisto, desligo lentamente o meu consciente… Uma libelinha desenha um voo à minha frente, pousando num bule de chá...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Sr. Piercing

Sente-se bem? Sussurra o Sr. Piercing, estendendo um maço de lenços aberto.
Aos primeiríssimos acordes da nona de Beethoven, não contive as lágrimas cheias que me rasgaram o rosto, caindo desamparadas nas mãos que seguravam a emoção na echarpe. Foi assim que conheci o Sr. Piercing, na sala Suggia de uma noite de lua cheia, emocionada por uma interpretação magnífica. Ao intervalo devolvi-lhe o maço fechado, e reparei no piercing discreto que ostentava no trago de uma orelha perfeita. Segui atenta o desenho do lóbulo, o recorte da hélix cartilaginosa, a depressão da concha… absolutamente distinta! O concerto ainda não tinha recomeçado, mas eu dirigia-me a ele junto ao ouvido, agradecendo a preocupação, elogiando o pavilhão auditivo!
A nona sinfonia foi apresentada pela primeira vez a 7 de Maio de 1824, no Kärntnertortheater, em Viena. Beethoven foi dissuadido da regência devido ao seu avançado estado de surdez, tendo direito a um lugar especial no palco, junto ao maestro. Sonho com essa estreia, como terá sido comovente, e no final toda a plateia a aplaudir de pé, cinco vezes! Imagino o colorido dos lenços e dos chapéus erguidos no ar, para que Beethoven que não ouvia, pudesse pelo menos ver.
A plateia aplaudiu duas vezes, em pé. Aproveitei a segunda para voltar a contemplar a perfeição da aurícula, desejosa por saber se a outra também era assim… convidou-me para um café. E do estímulo quente do vício, saiu outro convite… um passeio, da minha língua, na orla da sua orelha! Desde esse dia ganhou a alcunha de Sr. Piercing.