sexta-feira, 30 de setembro de 2011

não semeio ventos

Passei o portão antigo descascado de verde e fiquei a olhar para a pequena parcela de terra que espera o meu tempo. As relações pessoais podem ser comparadas àquele terreno lavrado protegido pelo muro antigo de pedra. Por sua vez a terra escura remexida pronta a receber as sementes, são as pessoas com quem convivemos, sejam elas amigos, amantes, familiares ou simplesmente pessoas com quem nos cruzamos no dia-a-dia. O modo como nos relacionamos, como agimos perante essas pessoas, define aquilo que somos aos olhos dos outros, mas ainda mais importante define o que queremos ser.

Assim que começo a remover da terra as ervas daninhas, não penso no que vou colher. Se o que lanço à terra vai brotar ou não depende de muitos factores, não controlo a chuva, o calor ou o frio. Posso regar, transplantar se for necessário, proteger dos pássaros e dos insectos, mas no fim depende da vontade da terra que recebe a semente. Do mesmo modo vejo as pessoas que me rodeiam, o que lhes posso dar estará sempre dependente daquilo que estão dispostas a receber, não espero nada em troca, mas sei que no fim colhemos sempre aquilo que semeamos, seja frutos ou tempestades.
http://www.123rf.com/photo_6445280_lock-on-iron-door-grunge-background.html

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

lugares desmarcados

Os doze centímetros de tacão ficaram parcialmente presos no espaço enlameado existente entre dois paralelos. A ideia era agradável, uma visita às caves antes do jantar, mas o calçado de cerimónia estava desajustado ao piso agredido pelo tempo. Baixou-se gentilmente e com um movimento controlado desencaixou o salto quase sem me tocar. Agradeci a cordialidade démodé, e continuamos na visita sem mais troca de palavras, adiantando-se no grupo para acompanhar alguém que seguia mais à frente.

Pelo menos uma vez por ano a minha presença é reclamada num jantar de gala oferecido pela empresa por altura da comemoração de mais um aniversário, serviram um aperitivo na sala anexa com vista para o jardim iluminado. Deixei o copo de Porto branco numa bandeja que passava e aproveitei o exterior para sentir o frio e cheirar a alfazema crescida nos canteiros. Ele aproximou-se, ofereceu um cigarro que recusei e ficamos a apreciar em silêncio a companhia um do outro. Pisou o cigarro antes de voltar à sala, despedindo-se com um até já.

Não o conhecia, não tínhamos sido apresentamos, podia ser um fornecedor ou cliente. Voltei à sala demasiado quente e pedi ao balcão um copo de água fresca. Atrás do vidro que separava o bar do salão de jantar de tecto alto, podia vê-lo em volta das mesas atrás de um empregado. Fiquei ainda mais curiosa, quem seria aquele homem dono de movimentos precisos, cabelos escuros que caiam em madeixas revoltas, um perfume másculo mas quase imperceptível, cativante pelo que não revelava, olhar tentador, morno, acumulado de mistério.

Guido abeira-se com grande alarido, fazendo-se anunciar a seis metros de mim. Beija-me a mão apertando-a nas suas, compensa com carácter e charme o que lhe falta em beleza. É mestre no domínio da arte de seduzir, este maldito romano que cobiça o meu decote. Escolhe as palavras que quero ouvir e exala-as naquela língua sensual perto do meu ouvido. Pedi para me sentarem ao teu lado, só vim nessa condição! Diz esperando ver-me derreter nos seus braços.

Quando as portas do salão principal se abrem anunciando que o jantar vai ser servido, ele segue-me bem de perto à procura do meu lugar. É com surpresa que volto a cruzar-me com o estranho que me libertou o salto, afasta a cadeira supostamente a mim reservada pela presença física de um cartão. Do meu lado esquerdo na mesa redonda não é o nome do italiano que consta.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

sinto-te

O som da chuva intensificou-se lá fora, puxei o lençol enrolado aos pés da cama, que a volúpia arrastou deixando os corpos descobertos. A madrugada acordava fria, o céu velado lembrava as manhãs de inverno, dias curtos em que o sol mal se sustenta no horizonte.

Voltei-me para ele, o rosto pacífico de Adónis, algures naufragado num sonho, exalando o ar de forma inaudível mas quente, vivo, num corpo belo despido. Os dedos vacilaram ao aproximarem-se de um ser tão perfeito, ansiava tocar-lhe, torna-lo real, senti-lo sob cada célula de mim, derme contra derme. Hesitei pela vontade de não o querer resgatar do sonho, ou talvez a ilusão fosse minha, um sonho personificado na forma de um deus fenício, que ali dormia junto a mim.

Deixei a cama em silêncio e nua, percorrendo a casa até à varanda, recebi a chuva escura que me saudou refrescante, gotas que me tocavam, encerrando nelas o cheiro dele, e se cheirava a ele, então era real, tão real como aquela chuva, que me despertava os sentidos. Provocado o desejo, ardendo no íntimo, voltei à cama, deixando para trás pegadas no soalho. Fria, molhada, por dentro e por fora, encostei-me ao seu corpo quente, real, imenso, deslizando por cima da sua pele, por baixo do lençol, aspirando a alma, vertendo-me nele.
Acordou afogado num sonho.

(publicado a 2 de Setembro de 2011)

terça-feira, 20 de setembro de 2011

não sinto

Por uma última vez, de Tânato apenas permaneceram as asas para ser Cupido por um dia... o coração de ferro e entranhas de bronze ganharam vida e acautelei-me da ponta afiada da seta que espera por ser lançada. Ainda mora na memória a cor do sangue vivo e brilhante, uma gota que alastrava na polpa do dedo. Levei-o à boca, o sabor salgado, ligeiramente metalizado da ferida aberta que a seta deixou. E a seta que a mim não me era destinada, mas sim a outra, por azar ou quem sabe a sina, a minha linha traçada pela lâmina do destino, o meu dedo picou. E mal os meus olhos encontraram os seus, a paixão levou-me num rodopio, meus pés apartaram-se do chão e eu deixei-me ir, de coração derretido, rendido, perdido.
Desta vez não posso errar, e só o faço porque não suporto o sofrimento destas duas almas agonizantes. Escolho cuidadosamente uma seta da minha aljava, encordoado o arco com esforço sob a minha perna nua, faço mira sobre aquela por quem o seu coração palpita, destinatária das suas palavras, musa inspiradora de noites e dias.
Que a seta do amor a atinja...

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

a leveza da irreversibilidade

O ar fragilizado e enrugado deu-me uma certa nostalgia, afeiçoei-me como se fosse um enorme cão velho abandonado à chuva, de pêlo encharcado. Dormia um sono muito leve, como uma pena que levita à passagem invisível do ar, o simples desengatilhar do travão de segurança acordou-o. Nos olhos aquele azul enigmático, opaco de dor, uma réstia colorida de tempos áureos. Sorriu ao ver-me de arma em punho, não era uma execução que me desse grande prazer, mas alguém tinha de o fazer, e ao menos eu podia assegurar que partiria com o respeito e dignidade que a idade pedia.

Estava no fim, a vida tinha sido uma sucessão de erros, não era um ser humano perfeito e as opções que tomara e o caminho que traçara, continuavam a incomodava muita gente. Mas agora era um trapo, um pedaço de pele cinzenta tolhida aos ossos, consumido pela doença, aprisionado até ao fim a um cancro.

-se soubesse que a morte era tão bela, já me tinha rendido há mais tempo, quando eu ainda era homem.
-meu querido, a doença afectou-te o juízo. Nem eu sou assim tão bela nem tu deixaste de ser homem.
-tive os meus dias, isto que agora vês nem sequer é uma sombra do que fui. Faz o que te trouxe aqui, nem imaginas o quanto te esperei.
-por ser para ti dou-te a escolher entre a bala ou o químico.
-de certeza que quem te enviou quer o assunto arrumado com um cartucho vazio, e eu prefiro que assim seja, assegura-te apenas que quando saíres por aquela porta, eu estou bem morto.
-mais alguma coisa?
-um último desejo, gostaria de saber o nome da minha executora.
-Judith
-apropriado para uma assassina, muito prazer em conhecer-te Judith. Estendeu-me a mão esquerda que cumprimentei e mantive apertada.
- não tenho comigo nenhum cartão de visita, se não deixava-te um para quem sabe, no futuro, caso viesses a precisar.
-mortalmente bela e com sentido de humor, haverá quem te resista?
-dificilmente meu querido. Aponto a arma, um som abafado pelo silenciador determina o fim.

sábado, 17 de setembro de 2011

na zdravie! capítulo III

A manhã amena e a vista privilegiada sobre a parte velha de Bratislava, foram motivos mais do que sobejos para pedir o pequeno-almoço na varanda. Enrolados nos roupões brancos, cabelos ainda molhados do duche partilhado, esfomeados de alimento mas saciados de prazer.
O café é uma água tingida que misturo com um pouco de leite. Fruta fatiada, compotas de citrinos e amoras ligeiramente ácidas, que ligam com pãezinhos adocicados, ainda quentes. Falo-lhe da vista, o edifício da Ópera Nacional e a praça Hviezdoslav, o castelo no sopé da colina, o mesmo que se pode ver nas recentes moedas de 10, 20 e 50 cêntimos, catedrais e igrejas, e os lindíssimos palácios barrocos. Fuma um cigarro em silêncio, caídos nas cadeiras, cansados dos excessos, cruzo as minhas pernas por cima das dele e ficamos a observar os pássaros, atentos ao murmúrio da cidade que lentamente desperta num dia claro.

Foi a última vez nos vimos, despedimo-nos à porta do Carlton com um beijo demorado, entrei num táxi que me deixou umas ruas mais à frente junto ao meu hotel. Em poucos minutos troquei de roupa e calçado, um prático vestido solto de ganga, um lenço ao pescoço para dar alguma cor ao conjunto, umas sandálias rasas confortáveis e uma pequena mochila. Amarrei o cabelo e passei pelo rosto um hidratante, uns óculos de sol e a máquina fotográfica a tiracolo, davam-me o ar de turista necessário para passar despercebida no meio da multidão.

O alvo a abater era uma mulher, apesar de não ser muito comum, estava perfeitamente à vontade com isso. Aceito que até seja mais fácil para mim fazê-lo do que para um homem, pelo menos eu não corro o risco de ser seduzida por uma vítima mais ardilosa. Não seria o caso, era uma execução, nem sequer me aproximaria o suficiente para lhe ver a cor dos olhos.

A estação de comboios destoa com a modernidade do comboio austríaco. Antes de comprar o bilhete para Viena, levantei um saco de tecido cor-de-rosa com a Hello Kitty de um cacifo, estes clientes têm um sentido de humor peculiar. Só abri o conteúdo depois de entrar no comboio. Para além de um passaporte com nacionalidade americana que me identificava como Sophie, uma rifle de alta precisão de fabrico suíço, tal como eu tinha requisitado, e um iphone com alguma informação sobre o alvo, horários das suas actividades diárias, e a cópia da sua agenda para aquele dia. Tinha ainda indicações das coordenadas de GPS para onde me devia dirigir, a que apartamento subir, bem como chaves de acesso a esse mesmo edifício.

Era uma execução que se queria rápida, metodicamente posicionei-me junto à janela, montei a arma, ajustei a mira, um único disparo direccionado à cabeça, silenciosamente mortal. Deixei o edifício pelas traseiras, ao longe já se ouviam sirenes, mas podia ser apenas a minha imaginação e dirigi-me para o caís. Almocei a bordo do catamarã com destino a Bratislava, e entreguei às águas densas do Danúbio a arma e todo o restante conteúdo do saco.

Enviei uma mensagem a Alena agradecendo o convite, que a festa estava fantástica e ela a noiva mais linda que eu já tinha visto, e claro, um pedindo de desculpas por ter saído repentinamente. Respondeu-me logo de seguida, dizendo que estava de partida para lua-de-mel, mas que o avião estava atrasado. Ainda a apanhei no aeroporto, tomamos um chá e falamos do Galês, fiquei a saber que era geólogo, grande amigo do seu recente marido que esperava impaciente pelo avião, parece que se conhecem dos tempos de faculdade.

Não tinha ar de geólogo, nem de calções e havainas. Mais depressa o imaginava como escritor pela suavidade das mãos e dos gestos, ou com uma farda azul a pilotar um F16, mas isso talvez fosse só inspiração dos Ray-Ban aviador que usava. Cumprimentei-o com um beijo no rosto, voltamos a estar sentados frente a frente, numa mesa mais pequena, também redonda mas de esplanada, sem convidados ou brindes desastrosos. Conversamos de futilidades atmosféricas, de lugares comuns, a mão dele deslizou pelo meu joelho, relembrando-me como eram macios os seus dedos.
-Diz-me, como é que um geólogo tem mãos tão macias?

(publicado a 20 de Agosto de 2011)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

na zdravie! capítulo II

Na zdravie! Erguem os copos cheios… não é um mito que a maioria dos solteiros e desimpedidos que põem o pé num casamento, acabem a noite enrolados em lençóis alheios, bem ou mal fodidos. É perfeitamente compreensível, estão apresentáveis, arranjaram-se a rigor para a ocasião, resgataram das traças o melhor fato guardado no fundo do armário só usado em cerimónias do género, ou então, compraram propositadamente uma fatiota nova, algo mais na moda que irá ver a luz do dia uma ou duas vezes na vida. Provavelmente, e pelo que me é dado a observar, foram ao cabeleireiro, manicura e até pedicura, e não falo só das mulheres. Alguns fizeram dietas durante semanas para caberem num número abaixo… pelo menos é o que me diz a tradutora de espanhol ninfomaníaca.

Mas ser solteiro, desimpedido, sem compromisso num casamento, não é fácil, há dedos que se apontam, os anticristos da sagrada comunhão, adoradores do demo… são tratados como se fossem a equipe adversária, sentados numa mesa à parte, com a distância apropriada não vá aquilo ser contagioso. Nem toda a gente está sozinha por opção, e mesmo os que estão, vêem aqui a oportunidade de comerem uma refeição decente, aproveitando-se dos que ainda acreditam em contos de fada e procuram a metade que os vai acompanhar até à velhice… ou não! Bem vistas as coisas, um casamento dá-lhes esperança, é a lógica do: “se aquela lambisgóia gorda conseguiu arranjar um marido, eu também consigo!”

E depois há a bebida, quem consegue aguentar tanto brinde à noiva, aos noivos, aos pais da noiva, aos pais do noivo, avós, irmãos, aos cães do padrinho, tios-avós, primos de parte das coxas… por ai fora! A bebida é seguramente 70% da causa, pronto, diria que pode depender de caso para caso… neste eu corro o risco de dizer que é de 90%.

Quando acabou de almoçar o arroz com frango e cogumelos juntou os talheres com ar satisfeito, os outros já faziam descer pelas gargantas menos quantidade de champanhe, derramando cada vez mais o conteúdo das taças nas toalhas, de brinde para brinde.
-Tens de me compensar, disse com ar provocador. Que pena ele não entender português, estava tentada a oferecer-lhe a sobremesa… Levantei-me descalça e agarrei-o pela mão, conduzi-o por entre as mesas até ao fim do jardim e inicio do cimento, onde calcei apoiada no seu bíceps braquial bem trabalhado, os meus saltos pretos em cetim abertos à frente, com a típica sola em vermelho Christian Louboutin.
-Onde vamos? Perguntou sem se importar em receber uma resposta. Não estávamos muito longe, dois quarteirões e entravamos numa das avenidas principais, rasgada por uma fonte e abraçada pela sombra de pequenas árvores que cresciam de ambos os lados em terreno relvado. Escolhi uma mesa com sombra na esplanada e decidi os sabores dos gelados sem lhe pedir opinião, ele limitou-se a olhar para mim com um ar divertido mas misterioso que muito me atraia, e para o manter assim, pouco falamos o resto do dia, não queria saber nada sobre ele e ele também nada perguntou sobre mim.

Do outro lado da avenida o Radisson Blu Carlton, e um quarto com vista sobre o Danúbio. Desapertou-me o vestido fazendo-o descer pelos ombros, os lábios percorreram o pescoço causando um arrepio, deixei-me sentir, entreguei-me à habilidade das suas mãos que me acariciavam intimamente. Voltei-me para o ter de frente, lábios nos meus, enrolar a minha língua, aprisiona-lo pela boca, enquanto lhe despia a camisa. Cheirava deliciosamente bem, a pele macia, bem barbeado, um tronco musculado que me agarrava e comprimia para o sentisse viril. Estava desejosa para o ter, pegou em mim e sentou-me num sofá junto à janela. Voltamos ao encontro das bocas, e depois ele foi descendo, explorando o meu sabor, até a língua entrar em mim sem rodeios, até me deixar perdida, curvada de prazer empurrei-o para trás, para o puxar de novo para mim. Desapertei-lhe as calças, acariciei-o sobre os boxers, conseguia ver a ansiedade crescer-lhe à medida que as minhas mãos brincavam e a minha língua deslizava pelo lábio superior, num gesto que demonstrava gula. Saboreei-o, primeiro em lambidelas, como um gelado, depois sofregamente por inteiro.

(publicado a 18 de Agosto de 2011)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

na zdravie! capítulo I

Não sei como o ouvi chamar por mim do outro lado da rua com todo o movimento. É sempre uma confusão esta rua, alternada de esplanadas e lojinhas que se estendem dos seus parcos interiores, e ocupam metade dos passeios em calçada branca. Turistas atordoados, embriagados de consumo, procuram uma lembrança, enchem malas de bugigangas, inutilidades que transportam além fronteiras. E depois ainda há os automóveis largados junto ao passeio apesar da sinalização que diz ser proibido, uma via de sentido único, que mais se parece com um parque de estacionamento. Atravessou sem olhar, um carro buzinou e deu uma corrida pedindo desculpa ao condutor, esboçando um leve sorriso. Não o reconheci, bronzeado de calções e havainas, com barba de um ou dois dias levemente aclarada pelo sol.

Foi mais ou menos por está altura, há dois anos atrás. O convite vinha no meio das habituais resmas de publicidade que me atravancam a acanhada caixa de correio. Um envelope branco, distinguível dos demais pelo seu formato de carta, um selo estrangeiro, e uma caligrafia cuidada de um remetente distante… Eslováquia.
Alena era uma das raras amigas que mantive do tempo de juventude. Não sou pessoa de grandes laços emocionais, não crio raízes, mas por motivos de sanidade mental mantenho alguns contactos, um grupo de amigos restrito, para às vezes recordar que sou humana sob esta pele. E depois os amigos são sempre álibis perfeitos. O convite de casamento veio mesmo a calhar, tinha um pequeno problema para resolver em solo austriaco, Bratislava ficava mais ou menos a 66 km de Viena, supostamente as capitais mais próximas do mundo, mesmo viajando de comboio, em menos de quatro horas voltava às margens eslovacas do Danúbio, e misturava-me no meio dos demais turistas.

Ficamos sentados sensivelmente frente a frente, numa mesa redonda de doze pessoas, separados por pratos e pratinhos, talheres e copos, jarras com flores numa decoração muito campestre e até um pouco inusual, mas que ligava com o ambiente exterior do jardim, das cadeiras de orquestra em madeira, aligeiradas as traves por confortáveis coxins. Não conhecia ninguém para além dos noivos, e o meu eslovaco era muito limitado, sabia dizer ahoj, voda que é água, vino e pivo, e pedir uma aspirina ou perguntar pela toalety-damy,o inevitável para quem só sabia pedir bebidas. Tinha reparado nele durante a cerimónia religiosa precisamente porque se isolou no fundo da pequena igreja, sobressaindo dos restantes convidados.

Alena sentou-me junto a uma amiga que falava fluentemente espanhol, e que ia traduzindo na medida do possível o que eu não entendia, só me irritava é que me assediava constantemente, tocando-me na perna, no braço, aproximando-se de mim para falar, de um jeito que me deixava desconfortável. Quando começaram a servir o prato principal, as minhas suspeitas de que ele não era eslovaco tornaram-se evidentes pelo olhar de desconfiança que atirou à travessa. Kura s Ryžou a Hubami, frango com arroz e cogumelos, disse-lhe em inglês que eram vísceras de borrego, e que o segundo prato era peixe… ele agradeceu a dica e esperou pelo prato seguinte. Quando o empregado apresentou o segundo prato, Treska, uma salada de bacalhau bastante avinagrada, o desgraçado não conseguiu meter à boca mais do que uma garfada. Expliquei o que era, e disse que ele teria gostado do prato anterior, e que não eram vísceras de borrego mas sim peito de frango com cogumelos. Ele riu, se o sotaque inglês carregado em erre já o enchia de charme, aquele sorriso derretia o coração mais gélido. Fui à cozinha e por gestos e meias palavras lá consegui um prato de Kura s Ryzou a Hubami para a vítima da minha brincadeira.

(publicado a 17 de Agosto de 2011)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

sexto andar

Não sei se era Novembro, fazia todo o sentido que fosse, mas lembro-me que estava quente. Um calor daqueles que chegam nas primeiras noites de verão, assim quentes mas sem ser demasiado quentes. Mas seria o calor resultado da proximidade do astro ao nosso humilde planeta, ou a proximidade dos nossos corpos que provocou esta ilusão em mim? E mesmo que fosse Novembro, em que o ar esfria e uma rápida passagem do sol pelo horizonte nos lembra que o inverno já não demora, terei tomado por engano uma noite assim, por uma de Junho?
Seja como for, o que sentia ardia, mas numa chama contida. Como uma vela eléctrica daquelas que se acendem agora na igreja quando se deixa cair a esmola. Não era amor, nem sequer uma centelha mágica de paixão. Era algo diferente, uma sensação única, uma manifestação inexistente até aquele momento, mas era bom. Oh se era! O pecado da volúpia, o prazer tratado na primeira pessoa, sem cordialidades, falsos argumentos, mentiras ou justificações. Era porque era, e só isso interessava.
As suas mãos enormes percorreram-me, desde o joelho, subindo pela coxa,e e alternando entre a esquerda e a direita, os dedos sentiram a pele nua, descendo pelo decote, subindo pelas costas, libertando o que cobria o peito, e desnudado, sugou-o, abocanhou-o com a boca toda, como se as suas mandíbulas fossem as de um lobo faminto.
Os dedos continuavam, num trilho agora diferente, sentiam um interior ansioso, desejoso para receber o que podia sentir apertado, indomável, não contido dentro das suas calças. Esticou um braço em direcção ao painel e o elevador parou algures entre o quarto e o quinto, soltei-o e entrou em mim com força, espremendo-me contra a cabine.
Senti-me num remoinho, uma oura levou-me a um sitio fora de mim, e em gemidos pedi que não parasse até eu atingir o outro lado, e assim que lá cheguei, desafogada num grito que veio lá do fundo não sei de onde, ele também se veio.
Saiu no sexto andar, eu continuei para o nono, já estava atrasada para o jantar de aniversário.

(publicado a 14 de Agosto 2011)