quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

lugares desmarcados - segundo round

primeiro round em http://apaixonadassassina.blogspot.com/2011/09/lugares-desmarcados.html

O pé-direito elevado em colunas espaçadas, aberta uma das paredes em janelas, conferia à sala uma dimensão ilusória. Moderadamente iluminada, o tecto em tabuado escuro suavizava o ambiente tornando-o harmonioso, distante na medida certa do formal a que a ocasião impunha, experimentando quase um arrebol romântico.

Os focos acenderam um pequeno palco negro não merecedor de reparo, a poucos metros da nossa mesa. Os músicos abraçaram um círculo imaginário, encarnando os instrumentos com movimentos certos, desaparecendo sobre eles assim que a cantora subiu ocupando o centro insigne.
Trajava um vestido franjeado que lhe tornava a pele ainda mais pálida pelo contraste com o tecido escuro, ornamentado o rosto de uns curtos e largos caracóis platinados, e a boca ladeada por um baton afogueado.
Soltaram-se os primeiros acordes amarrados, manteve os olhos fechados enquanto os sentia roçagarem a pele branca e depois a boca abriu-se, e das goelas desfraldou límpida a voz com pronúncia quente a português tropical. Bom demais!

Ergueu-se e senti que estendia a mão, convidando-me para dançar. Olhei primeiro a mão, depois olhos nos olhos, na tentação morna pensei fazer-me difícil, fingir que não estava ansiosa para sentir o ritmo descer-me pelo corpo e deixar que tomasse conta de mim. Acedi mas ocultei o desejo que já se instalara em definitivo, deslizei pelo soalho dominada pelo ritmo, refreada nos seus braços avassaladores, mãos grandes arrogaram-me, levando-me para longe e de novo trazendo-me para perto, tão perto que os lábios quase se tocaram. Quase!

O romano desconcertado, afastara-se em busca do seu lugar, a sua altivez sofrera uma estranha metamorfose, caminhava aturdido pelo meio das mesas redondas como uma gigante Blattaria, de orgulho ferido pela atenção que subitamente eu havia transferido para o estranho que se sentara ao meu lado.

Do barulhento italiano, já não havia sinal.
Respondi com um sorriso ao seu sorriso, agradada com tamanha ousadia. Li o seu nome em voz alta, segurando com a ponta dos dedos o cartão creme impresso a Palatino linotype com letras douradas tamanho vinte e oito, questionando qual seria a probabilidade de ficarmos sentados lado a lado, no meio de tantos convidados. A conversa fluiu prazenteira durante todo o jantar, desobrigada de constrangimentos à medida que ia desfilando a ementa à nossa frente.
Conduzia-me pelo espaço num movimento cadenciado, a minha mão sobre o seu ombro, sentindo a dele no fundo das minhas costas, firme. E tão perto, podia admirar cada pormenor do seu rosto, ver com clareza a cor dos olhos que desviava sem querer dos meus … “só tinha de ser com você”!

“É, você que é feito de azul,
Me deixa morar nesse azul,
Me deixa encontrar minha paz,
Você que é bonito demais,
Se ao menos pudesse saber
Que eu sempre fui só de você,
Você sempre foi só de mim.”


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

o beijo

Uma morrinha cobria o pátio em cimento nos primeiros tempos da tarde, trocávamos o acalento dos corredores apinhados pela húmida e alternativa entrada exterior. Língua Portuguesa na sala quinze depois de um furo bem recebido.

Puxou-me desajeitado por um braço na promessa de revelar um segredo, e deixei-me ir enfadada pelos coaxos. Na distância de alguns metros, ao dobrar da esquina do pavilhão, a sala de química vazia, persianas corridas até ao topo, era o cenário perfeito que ele procurava. Aproximou-se sem aviso, encostando os lábios de anfíbio à minha boca, e depois o deslizar da extensa língua ainda a saber a moscas.

Pressionou-me entre o seu corpo rugoso e a flexibilidade do plástico da persiana, mantendo-me cativa qual presa apanhada de surpresa, os joelhos tremiam elevando-me cinco centímetros acima do chão, segurou-me ferozmente pelas ventosas onde terminavam os seus dedos. Não ofereci resistência, aguardando de olhos bem fechados até deixar de sentir a sua enorme boca que quase me engolia.

Afastou-se e eu acolhi uma lufada de ar fresco e morno, recuperando o equilíbrio. Acabara de reduzir a minha expectativa de vida num minuto, mas era bom. O ritmo cardíaco lentamente decaia, e ele olhava-me com aqueles olhos claros e protuberantes de sapo, com um esgar parvo a rasgar-lhe o rosto.

Ao sublevar da campainha seguiu-se a entrada da professora na sala, as maçãs ruborizadas anunciavam à plateia que se dava início ao primeiro acto. Depois da Língua Portuguesa seguiu-se Ciências da Natureza, e eu esperava ansiosa que as horas passassem, olhando por cima do ombro na esperança que o Sapo se tivesse transformado finalmente num Príncipe.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Omnes vulnerant

Deitaste-me no chão como na aurora do Mundo, cobrindo-me com um manto de estrelas na lenta movimentação pelo celeste, e em silêncio, beijamos a Lua com a ponta dos dedos.

O peso do escudo que ostentava o confronto entre a Quimera e Belerofonte, já não se sustinha no antebraço, o herói montado em Pégaso derrotava o monstro que bafejava fogo.
Arranquei o elmo adornado de crina escarlate todo ele salpicado de sangue, deixando-o cair pesado por terra. Sufocava sob o metal finamente gravado com intrincados desenhos lembrando anfisbenas. Apartei o cabelo colado ao rosto pelo esforço, respiro.

A lança abandonada num dorso moribundo, não voltaria a ser arremessada pela mão tão habituada, e apenas o xiphos se mantinha atado, oscilante por debaixo do braço esquerdo. Senti-lhe o punho já gasto tingido de suor, como um amigo a quem se abraça, o fiel gume limpo de sangue, enterrado para a eternidade na doce bainha.

As ruínas recortavam o luar em formas estranhas, seres que conspiravam animados pelo nocturno, projectando sombras sem movimento. Nunca temes o que se oculta por detrás destes edifícios, o que foi em tempos um império, não passam agora de escombros esquecidos. Tenho frio.

Deslacei as tiras de couro, a túnica de linho sob a couraça absorvia o sangue numa pasta húmida e quente. A batalha ainda não tinha chegado ao fim e eu tombava aos teus pés, destituída de forças, mãos ensanguentadas, negras da terra que tudo engole. Não há poro em mim que não se encha dela, começou por se acumular debaixo das unhas, lentamente depositou-se debaixo da pele, o que era apenas poeira, cinza, tornou-se uma segunda camada viva. Preencho-me com ela para ocupar o vazio que em mim vai crescendo, o vazio que vais deixando.

Tens os olhos marejados turvos de sal. Não feches a ferida que abriste, quero que ela sangre continuamente, recordando-me o torpor avassalador que exerces sobre mim. O inverno não tarda, as folhas já abandonaram os ramos mais altos e cobrem os braços do vento.
Prostrada do ferimento, perco o olhar algures no infinito. Sinto o leve caudal morno que escorre do peito em direcção ao ventre, transpõem o feltro que forra as cnémides atadas às tíbias, manchando o teu manto dourado.
Omnes vulnerant, ultima necat.* Disse, depondo as minhas armas, abrindo mão de ti para sempre.

*Todas (as horas) ferem, a derradeira mata.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

desalento

"Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te."
William Shakespeare

Demorei-me em frente ao espelho, fitando indecisa aquele rosto de olhos inchados e lábios quebrados sem sorriso, emoldurado por caracóis rebeldes que cresceram durante a noite, desalinhados no topo da nuca, gritando em desespero por um pente. Quem é esta? Interroguei-me, quem é esta que acordou pela madrugada na minha cama, que usa o meu pijama e calça as minhas pantufas? Esta que espreme o dentífrico pela cerda da minha escova, esta que me desafia de olhos semicerrados, mirando-me na intimidade do meu casulo. Arranquei os restos de sono da cara com água fria, vi-os diluírem-se lentamente, desenhando círculos que desobedecem à força de Coriolis, descendo contrariados pelo ralo do lavatório.

Um breve toque no telemóvel distraiu-me do duelo diante da imagem estranha, anunciando sem graça a chegada de uma mensagem. Não me precipitei sobre ele, aquele sinal vespertino nunca poderia ser de quem eu gostaria que fosse. “Pequeno-almoço?” Perguntava em duas palavras, hoje não estou boa companhia, sinto-o à flor da pele que não se quer minha, mas aceito pela necessidade de forrar o estômago e de lhe dedicar no mínimo meia hora de atenção.
Perdemos a conta aos anos que nos ligam, foi sempre assim uma indefinição, uma relação de amizade estranha, inclassificável pelos padrões normais que nos tentam impor diariamente. “Como o conheceste?” querem saber as curiosas… não sei, já não me lembro, foi um acaso.

Quando entro no pequeno café que se alonga num corredor de mesas, já ele desfolha sem interesse o jornal. Sorri assim que me vê, acenando-me na solidão de lugares à espera de clientes. Mesmo que o espaço estivesse a abarrotar de cabeças e corpos bebericadores de cafeína, ainda mal acordados pela manhã cinzenta que se colava na montra recheada de pasteis, aquele rosto de uma beleza fora do habitual, sobressairia como um raio de sol que rasga as nuvens. Já me questionei várias vezes sobre as forças da natureza que estariam presentes no momento da união de duas células singulares, para que originassem um ser humano tão distinto, mesmo não sendo perfeitamente simétrico, um belíssimo exemplar da raça humana!
-Que carinha é essa? nem te reconheço…
-nem eu mesma me reconheço… Respondo, com vontade de deitar a cabeça sobre a mesa.
-que se passa contigo? Que olhar triste é esse?
- não sei, ando assim desanimada… Lê ai o meu horóscopo!
-queres que te anime? Pergunta provocador, uma sobrancelha sobe ligeiramente acima do normal, mas é uma tentação a que resisto sem dificuldade.
-não é falta dessa animação…
-já entendi, é algo mais condensado, mais profundo, o amor tem dessas coisas…
- para quem se diz pouco entendido nos assuntos do coração, pareces um especialista a falar…
-dedico muito tempo à observação, e tu minha querida, és uma vítima dessa estúpida condição de apaixonada… transpiras paixão por todos os poros… quando é que aprendes a viver sem pensar nas consequências dos teus devaneios? Nem sempre é necessário amar…
-se tivesse ponderado nas consequências a que te referes, não estaria a suspirar… sinto-me uma idiota.
-não digas isso… sabes que no fundo te invejo por seres assim, uma apaixonada compulsiva! vais ver que daqui a dias já te apaixonaste de novo… logo esqueces este e outro ocupa esse lugar…
- invejo-te por seres um desprendido emocional… Lê ai o meu horóscopo!

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Sr. Pontual

Atravessei o corredor o mais apressada que os meus saltos permitiam, está mais que comprovado que não foram feitos para maratonas, são lindos, são novos e o latejar no calcanhar é o prelúdio para um dia longo. A secretária já me esperava ao alto forçando um sorriso nos lábios bem delineados, encarnado vivo sob uma pele imaculadamente branca, encaminhando-me com um gesto para a sala de reuniões.

De pé junto à janela, olha para o relógio no preciso momento em que entro ofegante, desfazendo-me em desculpas. Sabe que me irrita com aquele gesto, faz de propósito para me provocar, depois arranja o punho da camisa impecável, como tudo o resto nele. O meu director sorri, levanta-se para me cumprimentar, apertando as minhas mãos nas dele, e depois diz baixinho, galanteador como sempre: tivesse eu menos trinta anos…

Dá início à reunião depois de atirar pelo ar um olhar reprovador que eu adoro, era capaz de o fazer esperar várias horas só para ver aquele azul reduzido a cinza, vezes e vezes sem conta. É conhecido pelo rigor, excelente profissional, a pontualidade dizem que herdou juntamente com uma avultada quantia de dinheiro, uma costela britânica por parte da mãe. O director decide fazer mais uma observação … estivesse eu no lugar dele… não a deixava sair desta sala sem um convite para jantar! E sorri. Ele parece irritado com os nossos segredos e sorrisos cúmplices.

No fim da reunião fica à minha espera, o meu director parece ter tudo pensado e arrasta as restantes pessoas para fora da sala, discute pormenores técnicos com os demais colaboradores, deixando-me para trás com ele. Ainda não entendi o que vim aqui fazer.
Segura-me a porta com falsa cortesia, mira-me de cima a baixo, sinto-o com o olhar e depois com a mão numa dança pelas minhas costas, até a assentar de dedos abertos na nádega mais próxima. Aperta-me de forma excitante contra ele.

Às 21 em minha casa? Desafio, humedecendo o lábio inferior que deseja ser beijado. Inclina a cabeça próximo da minha sem me tocar, e diz num sussurro rouco: às 21 em ponto lá estarei … já sei que vou ter de esperar… mas não me importo!
Às vinte e uma, nem mais nem menos um minuto ou segundo que seja, ele chega. Recebo-o à porta em lingerie, atrasada como sempre.
Gosto dos teus atrasos, diz-me correndo os dedos pelo meu decote, arrepiando-me a derme.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Sr. Pecado

Estiquei os braços num longo espreguiçar, retesei os pés no limite quente do lençol. A outra metade da cama era fria quando vazia, senti a falta de um café forte e de algo que me confortasse o estômago. Apesar de ser feriado, incitei o corpo a abandonar a preguiça, metendo os pés nas pantufas de pêlo de ovelha, enrolando-me num largo casaco de malha.

Tomei o pequeno-almoço na poltrona voltada para a varanda, a casa em silêncio, lá fora um dia claro cheio de Outono apelava ao recolher. Precisava de mudar a pelagem, como uma raposa que sente o branco invernoso avançar, resgatar da zona mais recôndita do roupeiro os agasalhos quentes. A manhã torna-se proveitosa, o tempo verte-se lento e acumula sacos de excessos junto à porta, com destino determinado.

Desço à arrecadação por detrás dos lugares de garagem, a quietude é pontualmente interrompida pelas bombas da cisterna e pelo automatismo da porta que anuncia a chegada ou a saída de um veículo. O silêncio mortiço não me incomoda minimamente, perco-me pelos objectos aqui deixados. Um carro estaciona, o motor cala-se e é substituído pelo trautear de uma melodia conhecida. Reconheço a voz, canta ocasionalmente no chuveiro…

Se o pecado mora ao lado, estou sem dúvida a falar no vizinho do quarto direito. Segura a porta do elevador quando me vê surgir, e depois ajuda-me com a caixa cheia de livros que resolvi expiar do esquecimento. Parou de cantar, faz conversa de circunstância acompanhando-me até ao meu capacho.

Existem diversos pecados, desde os mortais aos veniais, sendo estes últimos mais leves, ligeiros… mas se não confessados, levam-nos ao Purgatório. Oh! O Purgatório… não me importava de o visitar pelo braço deste diabo de biceps musculados, mãos largas e um queixo quase quadrado. Convido a entrar e a aquecer-me.
Se o pecado morasse ao vosso lado, batiam-lhe à porta, ou mudavam de endereço? Desde esse dia ganhou a alcunha de Sr. Pecado.

sábado, 5 de novembro de 2011

na zdravie! capítulo IV

Não me responde, parece que aprendeu comigo, apenas sorri e tem um jeito muito próprio de o fazer, não é excepcionalmente belo, tem algo de estranho, talvez seja isso que me encanta. Esta singularidade diabólica que desenha nos lábios, um lobo matreiro de dentes aguçados, dissimulados numa branda pelagem de carneiro.

A mão desliza do joelho para o interior da coxa, o que era apenas dedos a passearem inocentemente pela minha derme arrepiada, tornam-se repentinamente num toque excitante, e confessa o quanto está feliz por me ter encontrado. Convido-o para me fazer companhia até à praia, conheço um areal pequeno, praticamente deserto pela arriba que dificulta o acesso. Inclina-se sobre mim para me beijar, os lábios encontram-se, sinto a garganta seca, o coração dispara, abro ligeiramente as pernas em perfeita e distante sincronia com os lábios, os dedos dele tocam-me, e a língua vai entrando numa boca que já conhece sem constrangimentos. Suga-me, enrosca-se qual trepadeira, deliciosa a boca, infernais os dedos.

Empurro-o, resisto, reclina-se na lona com ar satisfeito, sabe o que provoca, acabou de o saborear na ponta dos dedos que lambe com prazer. Quem o vê até julga que está saciado com um lauto manjar. Não são dedos nem pele, parecem mais garras cobertas de escamas aveludadas, escarlates lâminas que se cravam em mim. Paga os cafés e a água que escorreu veloz na minha garganta, levo-o pelo braço enrolado no meu, deixa-se ir mais uma vez sem desculpas, confiando nos meus instintos de navegante até à orla marítima, onde a vegetação sucumbe ao vento.

O negro das altas escarpas xistosas funde-se ao longe com vales cobertos de verde, numerosos veios avermelhados e alaranjados rasgam a superfície da falésia, um areal dourado tranquilo repousa no fundo, qual tesouro escondido de olhares alheios, banhado por um mar que oscila nas vagas e brinda-nos com a brisa fresca deixando o sabor do sal retido na pele. Uma praia quase deserta, um fim de dia que reclama o sol e entrega em justa recompensa a noite, sentando-se no trono uma lua nem tão cheia quanto isso.

Os corpos nus encontram-se depois de beijados pelo mar morno, dissimulados do mundo numa reentrância escavada na pedra solta pela força da natureza. Apoia-me numa rocha mais lisa, abre-me para que o receba em investidas compassadas, como as ondas que rebentam, abruptas, espumadas na areia, sinto-o dentro de mim, num momento infinito até me afogar nele. Sela o acto com um beijo. Um beijo terno, em tudo idêntico ao que demos à porta do hotel em Bratislava. Encosta a cabeça à minha, olhos de um profundo cinzento, doce abismo para a minha alma.

-que rocha escura é aquela? Aponto para a escarpa que desce abrupta. O mesmo sorriso intrincado surge no lábio, e na pronúncia que aperta os erres responde.
- fine-grained igneous rocks… Schist! Rise in proud hills, carved out by the hand of time, rocky tones face the watery depths of blue and the emerald green of the ocean floor…

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Medo ou falta de oxigénio?

Acordei em sobressalto, o coração a mil parece querer cavalgar sem arreios pelo peito, descontrolado, ainda sinto as mãos dele em volta do meu pescoço, tão real como se tivesse mesmo acontecido, a pressão na cartilagem da traqueia, mãos firmes, e no meu agitar vertia as forças que se perdiam, braços pesados como chumbo, pernas congeladas, amarradas sem acção… queria gritar, atingir com dureza aquele rosto ausente de gente, de voz, de cheiro… uma cara vazia, mas era ele sem dúvida, aquele que por vezes me atormenta, em silêncio me habita o sonho, infiltrando-se sorrateiramente pela madrugada nos meus pesadelos. Um arrepio percorre-me, mas estou a salvo.

Voltei-me depois de confirmar com um sorriso que ainda tinha três horas para dormir, dá-me sempre alguma tranquilidade saber que ainda me resta tempo, e três horas parecem uma eternidade. Raramente retorno ao pesadelo, mesmo que me sinta com forças e no intimo o queira confrontar, armada até aos dentes… prefiro não o fazer, fecho os olhos e espero o aconchego de um sonho… um sonho especial… daqueles como o outro chamou de Puff... Mesmo que no fim desapareça numa nuvem!

Encolho-me, está mais frio, sei que de lado ele não volta para me importunar. Porque será que isto acontece? Sempre que acordo de um pesadelo encontro-me em posição de decúbito dorsal. Será maior o esforço para respirar, e o cérebro fica privado de algum oxigénio, ou será que não passa de um medo ancestral, expor o abdómen relaxadamente… algo digno de um animal dominante, já vi alguns felinos dormirem assim, mas o instinto diz-nos que devemos assumir uma posição mais defensiva, e até porque sinto frio, encolho-me. E enquanto penso nisto, desligo lentamente o meu consciente… Uma libelinha desenha um voo à minha frente, pousando num bule de chá...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Sr. Piercing

Sente-se bem? Sussurra o Sr. Piercing, estendendo um maço de lenços aberto.
Aos primeiríssimos acordes da nona de Beethoven, não contive as lágrimas cheias que me rasgaram o rosto, caindo desamparadas nas mãos que seguravam a emoção na echarpe. Foi assim que conheci o Sr. Piercing, na sala Suggia de uma noite de lua cheia, emocionada por uma interpretação magnífica. Ao intervalo devolvi-lhe o maço fechado, e reparei no piercing discreto que ostentava no trago de uma orelha perfeita. Segui atenta o desenho do lóbulo, o recorte da hélix cartilaginosa, a depressão da concha… absolutamente distinta! O concerto ainda não tinha recomeçado, mas eu dirigia-me a ele junto ao ouvido, agradecendo a preocupação, elogiando o pavilhão auditivo!
A nona sinfonia foi apresentada pela primeira vez a 7 de Maio de 1824, no Kärntnertortheater, em Viena. Beethoven foi dissuadido da regência devido ao seu avançado estado de surdez, tendo direito a um lugar especial no palco, junto ao maestro. Sonho com essa estreia, como terá sido comovente, e no final toda a plateia a aplaudir de pé, cinco vezes! Imagino o colorido dos lenços e dos chapéus erguidos no ar, para que Beethoven que não ouvia, pudesse pelo menos ver.
A plateia aplaudiu duas vezes, em pé. Aproveitei a segunda para voltar a contemplar a perfeição da aurícula, desejosa por saber se a outra também era assim… convidou-me para um café. E do estímulo quente do vício, saiu outro convite… um passeio, da minha língua, na orla da sua orelha! Desde esse dia ganhou a alcunha de Sr. Piercing.

sábado, 22 de outubro de 2011

ode a meia Pizza

Coça a barba e num sorriso tímido,
fala-me do almoço,
malogrado e tardio.
Meia pizza, das congeladas…
Esquecida por tempo indeterminado,
Às voltas no micro-ondas …

Perdida? Pergunto,
não contendo um brilho nos olhos.
Nem por isso, apenas “Ressequida”
Uma tosta redonda…
Sem tomate suculento,
Ou mistura de queijos a desfiar pela orla…
desalento!

“Que queres, sou homem…”

Suspiro!
E embora o aspecto não seja divino,
Quero provar!
“Tens a certeza?” Pergunta, na dúvida…
Só um bocadinho…
E corta a metade que sobrou, tensa sobre a faca,
E da metade da metade,
corta um canto mais pequeno…

Que provo e… adoro!

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

o domador alado

Consoante o tempo que dedicava a uma amizade, isso manifestava-se na dificuldade em escolher uma prenda para oferecer. Procurei lembrar o que tinha comprado no ano anterior, senti necessidade de começar a tomar notas, fazer uma agenda com as datas e completar com os respectivos presentes, adicionando lembretes fundamentais, como por exemplo não oferecer brincos à Elvira… só reparei que nem sequer tinha as orelhas furadas quando ela ficou com um sorriso amarelo, mirando com estranheza para os pendentes com contas indianas que lhe comprei pelo Natal.

Deambulei meia perdida pelas estantes repletas de livros, a quantidade de sugestões e edições era assombrosa, cada vez que lia a contracapa de um título sugestivo, ainda ficava mais indecisa. E senti-o, silencioso mas presente, asas albas que sussurravam em uníssono: Tânatos…
-Trabalhas aqui? Perguntei, sem o encarar, mantendo os olhos na primeira contracapa que me apareceu pela frente.
-Sim… em que posso ajudar? Disse numa voz tranquila mas repleta de descrença, ocultando a pergunta que lhe ocupava a mente.
-Precisava de ajuda na escolha de um livro… um presente de aniversário. E olhei-o directamente nos olhos doces… terrivelmente doces. Fraquejei e ele sentiu, desviando a doçura para os livros nas estantes.
-Preferência por autor? Disse caminhando à minha frente… prendendo a minha atenção nas suas asas brancas, comuns mas invulgares, que se encolhiam na minha presença…
-Pergunta o que quiseres sobre mim…
Ele sorriu e percorreu duas estantes com a ponta dos dedos sobre as saliências das capas. Parecia um domador de lombadas, pronunciando palavras mágicas inaudíveis para os meus ouvidos, travando uma secreta conversação com os títulos. Voltou com um livro na mão e libertou a pergunta que mantinha aprisionada, não sei se por timidez ou polidez...
-Asas de Tânatos… És a morte?
-Não, sou apenas uma mensageira…
-Nunca vi umas asas como as tuas…
-Não há muitas por ai.

Ficamos especados, medindo o comprimento das palavras, escutando o que as asas nos diziam, e o que recitavam ou declamavam umas às outras, até sermos interrompidos por um ser desasado. Num tom estridente e ausente de delicadeza, reclamou a atenção dos olhos de mel. Ele muito cordial pediu um minuto à senhora vermelha de raiva, retomando o olhar na minha direcção. Sorte a dela não ser a mim direccionada aquela raiva, apetecia-me sentir o frio do gatilho e ter a sua cabeça redonda e vermelha na mira da minha arma…
-Recomendo este… se não gostar pode sempre trocar… no entanto deixo o aviso, os livros assim como as pessoas, não gostam de ser devolvidos às estantes, ficam ressentidos…
Sorri, tinha um jeito peculiar de falar que enfeitiçava tanto os livros como quem os lia. Agradeci a prestável ajuda e sai sem olhar para trás, sentindo os seus olhos ainda presos nas minhas asas.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Enchanté

Voltei a Paris no fim de Setembro, desta vez sozinha e em trabalho. Apesar dos motivos que me faziam regressar à Cidade Luz serem muito diferentes, senti a mesma emoção, a mesma paixão arrebatadora, completamente rendida aos encantos da cidade. Entre o aeroporto e o hotel mil e um pormenores cativavam a minha atenção, fiz um esforço para controlar o ímpeto de saltar do táxi e ir conhecer ruas e ruelas pelas quais nunca tinha caminhado, cafés, restaurantes e bares que não provara, lojas, feiras, museus, monumentos que não tinha visitado… Uma semana em Paris e pouco vimos para além dos locais mais turísticos, a torre Eiffel, o Arco do Triunfo, Notre Dame e o Louvre num constante tornado puxada pela mão dele, passando a maior parte do tempo no quarto do hotel a explorar o corpo um do outro, de todas as formas possíveis e imagináveis. E que corpo… sentia um calor crescente nascer no meio das coxas, tomando conta de mim cada vez que recordava aqueles momentos de volúpia, vivendo dias sem saber se eram noites.

-Une Bourgogne Pinot noir s'il vous plaît.
-Bouchard Aine, mademoiselle?
-Oui, parfait! Disse ao empregado de ar insolente, na esplanada do La Tartine, pedindo para além do vinho, um pão delicioso e uma tábua de queijos divinal. Marais é um bairro encantador de ruas estreitas, repleto de cor, magia, brilho… o sol mesmo tímido dava um ar místico a todos os recantos, e eu abandonava-me de perna cruzada numa cadeira em palhinha, cansada do passeio de domingo, fechava os olhos por detrás dos óculos escuros, deixando que os sons e os odores da cidade me preenchessem, sentia-me muito feliz por ali estar. Tudo em Paris parece harmonioso, conjugado na perfeita medida, charme, arte e cultura.

O telemóvel tocou-me na pouca vontade de o atender, um número anónimo lembrava-me as razões para ali estar. Não me apetecia, não tinha vontade de saber. Só queria voltar as costas, abandonar toda a vida até aí vivida e recomeçar, partir do zero, apaixonar-me... entregar-me intensamente! Atendi desanimada perante a falta de coragem para enfrentar o meu destino, como se fosse um touro ensanguentado na arena a que recuso olhar, do outro lado uma voz familiar meiga e doce fez-me sorrir e dizer alto.
-Oh quantas saudades! Que é feito de ti miúda?

Desliguei com um sorriso nos lábios, olhando incrédula para o visor. E ele aproximou-se, senti a sombra pairar sobre mim, o perfume de homem penetrou-me os sentidos sem eu me aperceber.
-Posso? perguntou puxando a cadeira ao lado da minha. Nem respondi e ele sentou-se, justificando que tinha ouvido a conversa, e que já não conseguia ter paciência para os franceses, que eu o tinha de ajudar a ver-se livre do colega que se aproximava acenando alegremente com o jornal debaixo do braço…
-Tem preferência pela forma de extermínio? Perguntei séria e profissional, tirando um cigarro do maço que o Don Juan me estendia.
-Só o consigo imaginar degolado… O homem fala pelos cotovelos, até tem aberturas no casaco!
-Degolado nos dias de hoje é pouco comum, vou ver o que se consegue arranjar.
O tal colega barrigudo e de sorriso permanente no rosto preparava-se para ocupar a terceira das quatro cadeiras da mesa, quando o senhor perfumado de cigarro pousado no canto do lábio se levantou e me apresentou.
-Laissez-moi vous présenter à …. Marta, ami de longue date ... vient d'arriver à Paris et j'ai promis de l'emmener pour un tour …
- Je m´appelle Judite!
-Pardonne-moi… Judite! Corou o individuo perfumado.
-Enchanté mademoiselle! Disse o senhor barrigudo mas cordial, apertando-me a mão gentilmente.

Deixei-me arrastar pelo ar certo dele, toda a composição lhe assentava como uma luva, desde a camisa em linho descontraída casada com umas calças claras, o cabelo denso e escuro salpicado em prata, o olhar indeciso entre um azul e cinzento. Olhei para trás para o senhor desolado entregue ao jornal, e o empregado quase feliz com a gorjeta que o cavalheiro galante lhe deixara juntamente com o pagamento da minha despesa, enquanto nos dirigíamos para Place des Vosges.
-Juan Belmonte ao seu dispor! Apresentou-se fazendo uma vénia teatral.
-Como o toureiro que lia livros?
-Prefiro as leituras às lides…! Disse com um sorriso modesto nos lábios. – Janta comigo, é o mínimo que posso fazer por me teres salvo da companhia do belga.
-Não te conheço de lado nenhum, Juan Belmonte!
-Mas não é isso que eu sinto… e não é isso que tu sentes…pois não? O homem nunca se deve por em posição de perder o que não se pode dar ao luxo de perder.
-Hemingway…
-Sinto que te conheço… sei que te conheço… aliás… E fez uma pausa absorvendo do ar uma porção invisível de eloquência. - Sei tudo o que há para saber sobre ti!
Um calafrio percorreu-me a espinha e procurei controlar os sentidos enrolando no pescoço o lenço indiano em tons quentes. Mas não era o calor da seda que eu sentia, mas dos seus dedos, puxando-me a boca na direcção da dele. Savolium, como os romanos denominavam o beijo profundo.

O primeiro de todos os beijos sacudiu-me leve pelo éter como se fosse uma pena, privando-me da segurança do chão. O segundo de todos os outros estremeceu a terra fazendo com que as estrelas perdessem o seu lugar, e no terceiro senti-me explodir de prazer, inundado o meu sexo desejei morrer naquele instante. Chamou um táxi. As mãos exploravam o que os olhos não viam, deixando-se guiar como amantes cegos ávidos de prazer. Paris passava iluminada ao anoitecer pelas janelas do automóvel, mas que interessava agora...

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

não semeio ventos

Passei o portão antigo descascado de verde e fiquei a olhar para a pequena parcela de terra que espera o meu tempo. As relações pessoais podem ser comparadas àquele terreno lavrado protegido pelo muro antigo de pedra. Por sua vez a terra escura remexida pronta a receber as sementes, são as pessoas com quem convivemos, sejam elas amigos, amantes, familiares ou simplesmente pessoas com quem nos cruzamos no dia-a-dia. O modo como nos relacionamos, como agimos perante essas pessoas, define aquilo que somos aos olhos dos outros, mas ainda mais importante define o que queremos ser.

Assim que começo a remover da terra as ervas daninhas, não penso no que vou colher. Se o que lanço à terra vai brotar ou não depende de muitos factores, não controlo a chuva, o calor ou o frio. Posso regar, transplantar se for necessário, proteger dos pássaros e dos insectos, mas no fim depende da vontade da terra que recebe a semente. Do mesmo modo vejo as pessoas que me rodeiam, o que lhes posso dar estará sempre dependente daquilo que estão dispostas a receber, não espero nada em troca, mas sei que no fim colhemos sempre aquilo que semeamos, seja frutos ou tempestades.
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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

lugares desmarcados

Os doze centímetros de tacão ficaram parcialmente presos no espaço enlameado existente entre dois paralelos. A ideia era agradável, uma visita às caves antes do jantar, mas o calçado de cerimónia estava desajustado ao piso agredido pelo tempo. Baixou-se gentilmente e com um movimento controlado desencaixou o salto quase sem me tocar. Agradeci a cordialidade démodé, e continuamos na visita sem mais troca de palavras, adiantando-se no grupo para acompanhar alguém que seguia mais à frente.

Pelo menos uma vez por ano a minha presença é reclamada num jantar de gala oferecido pela empresa por altura da comemoração de mais um aniversário, serviram um aperitivo na sala anexa com vista para o jardim iluminado. Deixei o copo de Porto branco numa bandeja que passava e aproveitei o exterior para sentir o frio e cheirar a alfazema crescida nos canteiros. Ele aproximou-se, ofereceu um cigarro que recusei e ficamos a apreciar em silêncio a companhia um do outro. Pisou o cigarro antes de voltar à sala, despedindo-se com um até já.

Não o conhecia, não tínhamos sido apresentamos, podia ser um fornecedor ou cliente. Voltei à sala demasiado quente e pedi ao balcão um copo de água fresca. Atrás do vidro que separava o bar do salão de jantar de tecto alto, podia vê-lo em volta das mesas atrás de um empregado. Fiquei ainda mais curiosa, quem seria aquele homem dono de movimentos precisos, cabelos escuros que caiam em madeixas revoltas, um perfume másculo mas quase imperceptível, cativante pelo que não revelava, olhar tentador, morno, acumulado de mistério.

Guido abeira-se com grande alarido, fazendo-se anunciar a seis metros de mim. Beija-me a mão apertando-a nas suas, compensa com carácter e charme o que lhe falta em beleza. É mestre no domínio da arte de seduzir, este maldito romano que cobiça o meu decote. Escolhe as palavras que quero ouvir e exala-as naquela língua sensual perto do meu ouvido. Pedi para me sentarem ao teu lado, só vim nessa condição! Diz esperando ver-me derreter nos seus braços.

Quando as portas do salão principal se abrem anunciando que o jantar vai ser servido, ele segue-me bem de perto à procura do meu lugar. É com surpresa que volto a cruzar-me com o estranho que me libertou o salto, afasta a cadeira supostamente a mim reservada pela presença física de um cartão. Do meu lado esquerdo na mesa redonda não é o nome do italiano que consta.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

sinto-te

O som da chuva intensificou-se lá fora, puxei o lençol enrolado aos pés da cama, que a volúpia arrastou deixando os corpos descobertos. A madrugada acordava fria, o céu velado lembrava as manhãs de inverno, dias curtos em que o sol mal se sustenta no horizonte.

Voltei-me para ele, o rosto pacífico de Adónis, algures naufragado num sonho, exalando o ar de forma inaudível mas quente, vivo, num corpo belo despido. Os dedos vacilaram ao aproximarem-se de um ser tão perfeito, ansiava tocar-lhe, torna-lo real, senti-lo sob cada célula de mim, derme contra derme. Hesitei pela vontade de não o querer resgatar do sonho, ou talvez a ilusão fosse minha, um sonho personificado na forma de um deus fenício, que ali dormia junto a mim.

Deixei a cama em silêncio e nua, percorrendo a casa até à varanda, recebi a chuva escura que me saudou refrescante, gotas que me tocavam, encerrando nelas o cheiro dele, e se cheirava a ele, então era real, tão real como aquela chuva, que me despertava os sentidos. Provocado o desejo, ardendo no íntimo, voltei à cama, deixando para trás pegadas no soalho. Fria, molhada, por dentro e por fora, encostei-me ao seu corpo quente, real, imenso, deslizando por cima da sua pele, por baixo do lençol, aspirando a alma, vertendo-me nele.
Acordou afogado num sonho.

(publicado a 2 de Setembro de 2011)

terça-feira, 20 de setembro de 2011

não sinto

Por uma última vez, de Tânato apenas permaneceram as asas para ser Cupido por um dia... o coração de ferro e entranhas de bronze ganharam vida e acautelei-me da ponta afiada da seta que espera por ser lançada. Ainda mora na memória a cor do sangue vivo e brilhante, uma gota que alastrava na polpa do dedo. Levei-o à boca, o sabor salgado, ligeiramente metalizado da ferida aberta que a seta deixou. E a seta que a mim não me era destinada, mas sim a outra, por azar ou quem sabe a sina, a minha linha traçada pela lâmina do destino, o meu dedo picou. E mal os meus olhos encontraram os seus, a paixão levou-me num rodopio, meus pés apartaram-se do chão e eu deixei-me ir, de coração derretido, rendido, perdido.
Desta vez não posso errar, e só o faço porque não suporto o sofrimento destas duas almas agonizantes. Escolho cuidadosamente uma seta da minha aljava, encordoado o arco com esforço sob a minha perna nua, faço mira sobre aquela por quem o seu coração palpita, destinatária das suas palavras, musa inspiradora de noites e dias.
Que a seta do amor a atinja...

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

a leveza da irreversibilidade

O ar fragilizado e enrugado deu-me uma certa nostalgia, afeiçoei-me como se fosse um enorme cão velho abandonado à chuva, de pêlo encharcado. Dormia um sono muito leve, como uma pena que levita à passagem invisível do ar, o simples desengatilhar do travão de segurança acordou-o. Nos olhos aquele azul enigmático, opaco de dor, uma réstia colorida de tempos áureos. Sorriu ao ver-me de arma em punho, não era uma execução que me desse grande prazer, mas alguém tinha de o fazer, e ao menos eu podia assegurar que partiria com o respeito e dignidade que a idade pedia.

Estava no fim, a vida tinha sido uma sucessão de erros, não era um ser humano perfeito e as opções que tomara e o caminho que traçara, continuavam a incomodava muita gente. Mas agora era um trapo, um pedaço de pele cinzenta tolhida aos ossos, consumido pela doença, aprisionado até ao fim a um cancro.

-se soubesse que a morte era tão bela, já me tinha rendido há mais tempo, quando eu ainda era homem.
-meu querido, a doença afectou-te o juízo. Nem eu sou assim tão bela nem tu deixaste de ser homem.
-tive os meus dias, isto que agora vês nem sequer é uma sombra do que fui. Faz o que te trouxe aqui, nem imaginas o quanto te esperei.
-por ser para ti dou-te a escolher entre a bala ou o químico.
-de certeza que quem te enviou quer o assunto arrumado com um cartucho vazio, e eu prefiro que assim seja, assegura-te apenas que quando saíres por aquela porta, eu estou bem morto.
-mais alguma coisa?
-um último desejo, gostaria de saber o nome da minha executora.
-Judith
-apropriado para uma assassina, muito prazer em conhecer-te Judith. Estendeu-me a mão esquerda que cumprimentei e mantive apertada.
- não tenho comigo nenhum cartão de visita, se não deixava-te um para quem sabe, no futuro, caso viesses a precisar.
-mortalmente bela e com sentido de humor, haverá quem te resista?
-dificilmente meu querido. Aponto a arma, um som abafado pelo silenciador determina o fim.

sábado, 17 de setembro de 2011

na zdravie! capítulo III

A manhã amena e a vista privilegiada sobre a parte velha de Bratislava, foram motivos mais do que sobejos para pedir o pequeno-almoço na varanda. Enrolados nos roupões brancos, cabelos ainda molhados do duche partilhado, esfomeados de alimento mas saciados de prazer.
O café é uma água tingida que misturo com um pouco de leite. Fruta fatiada, compotas de citrinos e amoras ligeiramente ácidas, que ligam com pãezinhos adocicados, ainda quentes. Falo-lhe da vista, o edifício da Ópera Nacional e a praça Hviezdoslav, o castelo no sopé da colina, o mesmo que se pode ver nas recentes moedas de 10, 20 e 50 cêntimos, catedrais e igrejas, e os lindíssimos palácios barrocos. Fuma um cigarro em silêncio, caídos nas cadeiras, cansados dos excessos, cruzo as minhas pernas por cima das dele e ficamos a observar os pássaros, atentos ao murmúrio da cidade que lentamente desperta num dia claro.

Foi a última vez nos vimos, despedimo-nos à porta do Carlton com um beijo demorado, entrei num táxi que me deixou umas ruas mais à frente junto ao meu hotel. Em poucos minutos troquei de roupa e calçado, um prático vestido solto de ganga, um lenço ao pescoço para dar alguma cor ao conjunto, umas sandálias rasas confortáveis e uma pequena mochila. Amarrei o cabelo e passei pelo rosto um hidratante, uns óculos de sol e a máquina fotográfica a tiracolo, davam-me o ar de turista necessário para passar despercebida no meio da multidão.

O alvo a abater era uma mulher, apesar de não ser muito comum, estava perfeitamente à vontade com isso. Aceito que até seja mais fácil para mim fazê-lo do que para um homem, pelo menos eu não corro o risco de ser seduzida por uma vítima mais ardilosa. Não seria o caso, era uma execução, nem sequer me aproximaria o suficiente para lhe ver a cor dos olhos.

A estação de comboios destoa com a modernidade do comboio austríaco. Antes de comprar o bilhete para Viena, levantei um saco de tecido cor-de-rosa com a Hello Kitty de um cacifo, estes clientes têm um sentido de humor peculiar. Só abri o conteúdo depois de entrar no comboio. Para além de um passaporte com nacionalidade americana que me identificava como Sophie, uma rifle de alta precisão de fabrico suíço, tal como eu tinha requisitado, e um iphone com alguma informação sobre o alvo, horários das suas actividades diárias, e a cópia da sua agenda para aquele dia. Tinha ainda indicações das coordenadas de GPS para onde me devia dirigir, a que apartamento subir, bem como chaves de acesso a esse mesmo edifício.

Era uma execução que se queria rápida, metodicamente posicionei-me junto à janela, montei a arma, ajustei a mira, um único disparo direccionado à cabeça, silenciosamente mortal. Deixei o edifício pelas traseiras, ao longe já se ouviam sirenes, mas podia ser apenas a minha imaginação e dirigi-me para o caís. Almocei a bordo do catamarã com destino a Bratislava, e entreguei às águas densas do Danúbio a arma e todo o restante conteúdo do saco.

Enviei uma mensagem a Alena agradecendo o convite, que a festa estava fantástica e ela a noiva mais linda que eu já tinha visto, e claro, um pedindo de desculpas por ter saído repentinamente. Respondeu-me logo de seguida, dizendo que estava de partida para lua-de-mel, mas que o avião estava atrasado. Ainda a apanhei no aeroporto, tomamos um chá e falamos do Galês, fiquei a saber que era geólogo, grande amigo do seu recente marido que esperava impaciente pelo avião, parece que se conhecem dos tempos de faculdade.

Não tinha ar de geólogo, nem de calções e havainas. Mais depressa o imaginava como escritor pela suavidade das mãos e dos gestos, ou com uma farda azul a pilotar um F16, mas isso talvez fosse só inspiração dos Ray-Ban aviador que usava. Cumprimentei-o com um beijo no rosto, voltamos a estar sentados frente a frente, numa mesa mais pequena, também redonda mas de esplanada, sem convidados ou brindes desastrosos. Conversamos de futilidades atmosféricas, de lugares comuns, a mão dele deslizou pelo meu joelho, relembrando-me como eram macios os seus dedos.
-Diz-me, como é que um geólogo tem mãos tão macias?

(publicado a 20 de Agosto de 2011)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

na zdravie! capítulo II

Na zdravie! Erguem os copos cheios… não é um mito que a maioria dos solteiros e desimpedidos que põem o pé num casamento, acabem a noite enrolados em lençóis alheios, bem ou mal fodidos. É perfeitamente compreensível, estão apresentáveis, arranjaram-se a rigor para a ocasião, resgataram das traças o melhor fato guardado no fundo do armário só usado em cerimónias do género, ou então, compraram propositadamente uma fatiota nova, algo mais na moda que irá ver a luz do dia uma ou duas vezes na vida. Provavelmente, e pelo que me é dado a observar, foram ao cabeleireiro, manicura e até pedicura, e não falo só das mulheres. Alguns fizeram dietas durante semanas para caberem num número abaixo… pelo menos é o que me diz a tradutora de espanhol ninfomaníaca.

Mas ser solteiro, desimpedido, sem compromisso num casamento, não é fácil, há dedos que se apontam, os anticristos da sagrada comunhão, adoradores do demo… são tratados como se fossem a equipe adversária, sentados numa mesa à parte, com a distância apropriada não vá aquilo ser contagioso. Nem toda a gente está sozinha por opção, e mesmo os que estão, vêem aqui a oportunidade de comerem uma refeição decente, aproveitando-se dos que ainda acreditam em contos de fada e procuram a metade que os vai acompanhar até à velhice… ou não! Bem vistas as coisas, um casamento dá-lhes esperança, é a lógica do: “se aquela lambisgóia gorda conseguiu arranjar um marido, eu também consigo!”

E depois há a bebida, quem consegue aguentar tanto brinde à noiva, aos noivos, aos pais da noiva, aos pais do noivo, avós, irmãos, aos cães do padrinho, tios-avós, primos de parte das coxas… por ai fora! A bebida é seguramente 70% da causa, pronto, diria que pode depender de caso para caso… neste eu corro o risco de dizer que é de 90%.

Quando acabou de almoçar o arroz com frango e cogumelos juntou os talheres com ar satisfeito, os outros já faziam descer pelas gargantas menos quantidade de champanhe, derramando cada vez mais o conteúdo das taças nas toalhas, de brinde para brinde.
-Tens de me compensar, disse com ar provocador. Que pena ele não entender português, estava tentada a oferecer-lhe a sobremesa… Levantei-me descalça e agarrei-o pela mão, conduzi-o por entre as mesas até ao fim do jardim e inicio do cimento, onde calcei apoiada no seu bíceps braquial bem trabalhado, os meus saltos pretos em cetim abertos à frente, com a típica sola em vermelho Christian Louboutin.
-Onde vamos? Perguntou sem se importar em receber uma resposta. Não estávamos muito longe, dois quarteirões e entravamos numa das avenidas principais, rasgada por uma fonte e abraçada pela sombra de pequenas árvores que cresciam de ambos os lados em terreno relvado. Escolhi uma mesa com sombra na esplanada e decidi os sabores dos gelados sem lhe pedir opinião, ele limitou-se a olhar para mim com um ar divertido mas misterioso que muito me atraia, e para o manter assim, pouco falamos o resto do dia, não queria saber nada sobre ele e ele também nada perguntou sobre mim.

Do outro lado da avenida o Radisson Blu Carlton, e um quarto com vista sobre o Danúbio. Desapertou-me o vestido fazendo-o descer pelos ombros, os lábios percorreram o pescoço causando um arrepio, deixei-me sentir, entreguei-me à habilidade das suas mãos que me acariciavam intimamente. Voltei-me para o ter de frente, lábios nos meus, enrolar a minha língua, aprisiona-lo pela boca, enquanto lhe despia a camisa. Cheirava deliciosamente bem, a pele macia, bem barbeado, um tronco musculado que me agarrava e comprimia para o sentisse viril. Estava desejosa para o ter, pegou em mim e sentou-me num sofá junto à janela. Voltamos ao encontro das bocas, e depois ele foi descendo, explorando o meu sabor, até a língua entrar em mim sem rodeios, até me deixar perdida, curvada de prazer empurrei-o para trás, para o puxar de novo para mim. Desapertei-lhe as calças, acariciei-o sobre os boxers, conseguia ver a ansiedade crescer-lhe à medida que as minhas mãos brincavam e a minha língua deslizava pelo lábio superior, num gesto que demonstrava gula. Saboreei-o, primeiro em lambidelas, como um gelado, depois sofregamente por inteiro.

(publicado a 18 de Agosto de 2011)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

na zdravie! capítulo I

Não sei como o ouvi chamar por mim do outro lado da rua com todo o movimento. É sempre uma confusão esta rua, alternada de esplanadas e lojinhas que se estendem dos seus parcos interiores, e ocupam metade dos passeios em calçada branca. Turistas atordoados, embriagados de consumo, procuram uma lembrança, enchem malas de bugigangas, inutilidades que transportam além fronteiras. E depois ainda há os automóveis largados junto ao passeio apesar da sinalização que diz ser proibido, uma via de sentido único, que mais se parece com um parque de estacionamento. Atravessou sem olhar, um carro buzinou e deu uma corrida pedindo desculpa ao condutor, esboçando um leve sorriso. Não o reconheci, bronzeado de calções e havainas, com barba de um ou dois dias levemente aclarada pelo sol.

Foi mais ou menos por está altura, há dois anos atrás. O convite vinha no meio das habituais resmas de publicidade que me atravancam a acanhada caixa de correio. Um envelope branco, distinguível dos demais pelo seu formato de carta, um selo estrangeiro, e uma caligrafia cuidada de um remetente distante… Eslováquia.
Alena era uma das raras amigas que mantive do tempo de juventude. Não sou pessoa de grandes laços emocionais, não crio raízes, mas por motivos de sanidade mental mantenho alguns contactos, um grupo de amigos restrito, para às vezes recordar que sou humana sob esta pele. E depois os amigos são sempre álibis perfeitos. O convite de casamento veio mesmo a calhar, tinha um pequeno problema para resolver em solo austriaco, Bratislava ficava mais ou menos a 66 km de Viena, supostamente as capitais mais próximas do mundo, mesmo viajando de comboio, em menos de quatro horas voltava às margens eslovacas do Danúbio, e misturava-me no meio dos demais turistas.

Ficamos sentados sensivelmente frente a frente, numa mesa redonda de doze pessoas, separados por pratos e pratinhos, talheres e copos, jarras com flores numa decoração muito campestre e até um pouco inusual, mas que ligava com o ambiente exterior do jardim, das cadeiras de orquestra em madeira, aligeiradas as traves por confortáveis coxins. Não conhecia ninguém para além dos noivos, e o meu eslovaco era muito limitado, sabia dizer ahoj, voda que é água, vino e pivo, e pedir uma aspirina ou perguntar pela toalety-damy,o inevitável para quem só sabia pedir bebidas. Tinha reparado nele durante a cerimónia religiosa precisamente porque se isolou no fundo da pequena igreja, sobressaindo dos restantes convidados.

Alena sentou-me junto a uma amiga que falava fluentemente espanhol, e que ia traduzindo na medida do possível o que eu não entendia, só me irritava é que me assediava constantemente, tocando-me na perna, no braço, aproximando-se de mim para falar, de um jeito que me deixava desconfortável. Quando começaram a servir o prato principal, as minhas suspeitas de que ele não era eslovaco tornaram-se evidentes pelo olhar de desconfiança que atirou à travessa. Kura s Ryžou a Hubami, frango com arroz e cogumelos, disse-lhe em inglês que eram vísceras de borrego, e que o segundo prato era peixe… ele agradeceu a dica e esperou pelo prato seguinte. Quando o empregado apresentou o segundo prato, Treska, uma salada de bacalhau bastante avinagrada, o desgraçado não conseguiu meter à boca mais do que uma garfada. Expliquei o que era, e disse que ele teria gostado do prato anterior, e que não eram vísceras de borrego mas sim peito de frango com cogumelos. Ele riu, se o sotaque inglês carregado em erre já o enchia de charme, aquele sorriso derretia o coração mais gélido. Fui à cozinha e por gestos e meias palavras lá consegui um prato de Kura s Ryzou a Hubami para a vítima da minha brincadeira.

(publicado a 17 de Agosto de 2011)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

sexto andar

Não sei se era Novembro, fazia todo o sentido que fosse, mas lembro-me que estava quente. Um calor daqueles que chegam nas primeiras noites de verão, assim quentes mas sem ser demasiado quentes. Mas seria o calor resultado da proximidade do astro ao nosso humilde planeta, ou a proximidade dos nossos corpos que provocou esta ilusão em mim? E mesmo que fosse Novembro, em que o ar esfria e uma rápida passagem do sol pelo horizonte nos lembra que o inverno já não demora, terei tomado por engano uma noite assim, por uma de Junho?
Seja como for, o que sentia ardia, mas numa chama contida. Como uma vela eléctrica daquelas que se acendem agora na igreja quando se deixa cair a esmola. Não era amor, nem sequer uma centelha mágica de paixão. Era algo diferente, uma sensação única, uma manifestação inexistente até aquele momento, mas era bom. Oh se era! O pecado da volúpia, o prazer tratado na primeira pessoa, sem cordialidades, falsos argumentos, mentiras ou justificações. Era porque era, e só isso interessava.
As suas mãos enormes percorreram-me, desde o joelho, subindo pela coxa,e e alternando entre a esquerda e a direita, os dedos sentiram a pele nua, descendo pelo decote, subindo pelas costas, libertando o que cobria o peito, e desnudado, sugou-o, abocanhou-o com a boca toda, como se as suas mandíbulas fossem as de um lobo faminto.
Os dedos continuavam, num trilho agora diferente, sentiam um interior ansioso, desejoso para receber o que podia sentir apertado, indomável, não contido dentro das suas calças. Esticou um braço em direcção ao painel e o elevador parou algures entre o quarto e o quinto, soltei-o e entrou em mim com força, espremendo-me contra a cabine.
Senti-me num remoinho, uma oura levou-me a um sitio fora de mim, e em gemidos pedi que não parasse até eu atingir o outro lado, e assim que lá cheguei, desafogada num grito que veio lá do fundo não sei de onde, ele também se veio.
Saiu no sexto andar, eu continuei para o nono, já estava atrasada para o jantar de aniversário.

(publicado a 14 de Agosto 2011)